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Bolsonaro Candidato À Presidencia


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751 votos

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    • Marina Silva
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2 minutos atrás, Torf disse:

Mas só Deus é infalível, o homem näo. A pessoa condenada à morte vai ser julgada por homens portanto tal julgamento pode ser suceptível a falhas e erros o que transformaria, teoricamente, a pena de morte em um assassinato causado pelo Estado...

  Vamos abolir as prisões, afinal, existem julgamentos errados.

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1 minuto atrás, Kaio_Amaral disse:

  Vamos abolir as prisões, afinal, existem julgamentos errados.

Uma prisäo equivocada pode ser um erro reparável. Como reparar uma condenacäo à morte equivocada?

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5 minutos atrás, Torf disse:

Mas só Deus é infalível, o homem näo. A pessoa condenada à morte vai ser julgada por homens portanto tal julgamento pode ser suceptível a falhas e erros o que transformaria, teoricamente, a pena de morte em um assassinato causado pelo Estado...

Se fosse assim, Cristão nenhum poderia matar em legítima defesa, pois o próprio julgamento do Cristão sobre como ele deverá agir, caso julgue estar em perigo, poderia estar errado. Ademais, é logicamente impossível a pena de morte vir a si tornar um assassinato, pois, como disse antes, assassinato é o ato intencional de, ilegitimamente, tirar a vida de outra pessoa, o Estado não tem a intenção agir ilegitimamente, pois pensa estar agindo de modo legítimo.

 

2 minutos atrás, Torf disse:

Uma prisäo equivocada pode ser um erro reparável. Como reparar uma condenacäo à morte equivocada?

Matar em legítima defesa equivocadamente não pode ser reparado. Devemos proibir as pessoas de se defenderem?

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9 minutos atrás, Torf disse:

Uma prisäo equivocada pode ser um erro reparável. Como reparar uma condenacäo à morte equivocada?

  Você generaliza o problema para procurar erros, perdão, mas acho isso muita desonestidade intelectual. 

  Com análises simplistas eu acho erro em qualquer coisa, ora bolas! Parece que vocês acham que se instituírem lei de pena de morte vai ser assim "Foi contra a lei, morreu!". Não é tudo tão simples! Para ir para cadeira elétrica creio que teria que se ter muita evidência, não se manda suspeito para o corredor da morte.

  Enfim, que eu saiba, o Bolsonaro nunca se pronunciou sobre como seria a legislação acerca da pena de morte, se ele procurasse instituí-la, fora que não depende só dele. Vocês estão querendo julgar os erros dos meios sem saber quais meios serão tomados.

  A questão que deve-se colocar é se a pena de morte pode ser legítima, os meios tem que ser decididos posteriormente a isso.

 

 EDIT: Os meios têm que ser discutidos depois disso.

Editado por Kaio_Amaral
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47 minutos atrás, Thraex disse:

Posso estar errado, mas, ao meu ver, ateus não tem moral, não podem acreditar em certo ou errado. Eles apenas tem certos valores que eles própios consideram bons. Um cristão sabe que matar é errado porque é assim Deus estabeleceu. Mesmo que ele seja um assassino, ele sabe que matar é errado,. Ao contrário, o ateu acha que matar errado, porque ele mesmo considera o ato como uma coisa ruim.

 

 

Moralidade não vem da religião.

 

Obs: Não consegui formatar o texto,aqui onde eu trabalho não tem Word,então fique a vontade para ler direto da fonte

(página 234)

https://drive.google.com/file/d/0B13y6AopiKbbbkpWNzAzRWZWY0k/view?pref=2&pli=1 

 

Spoiler

UM ESTUDO DE CASO DAS RAÍZES DA MORALIDADE

 

Se nosso senso moral, assim como nosso desejo sexual, estiver mesmo profundamente enraizado em nosso passado darwiniano, que precede a religião, a expectativa seria de que pesquisas na mente humana revelassem algumas universais da moral, cruzando fronteiras geográficas e culturais, e também, o mais crucial, barreiras religiosas. O biólogo de Harvard Marc Hauser, em seu livro Moral minas: How nature designed our universal sense ofright and wrong [Mentes morais: como a natureza desenhou nosso senso de certo e errado], ampliou uma linha fértil de experiências de pensamento que havia sido originalmente sugerida por filósofos morais. O estudo de Hauser servirá ainda para apresentar o modo como pensam os filósofos morais. Um dilema moral hipotético é formulado, e a dificuldade que sentimos para responder a ele é reveladora em relação a nosso senso de certo e errado. Hauser vai além dos filósofos porque realiza pesquisas estatísticas e experiências psicológicas, usando questionários na internet, por exemplo, para investigar o senso moral depessoas de verdade. Do ponto de vista atual, o interessante é que a maioria

das pessoas chega às mesmas decisões quando fica diante desses dilemas, e

sua concordância em relação às próprias decisões é mais forte que sua

capacidade de articular suas motivações. É o que esperaríamos se tivéssemos

um senso moral que esteja impresso em nosso cérebro, como nosso instinto

sexual ou nosso medo de altura, ou, como Hauser prefere dizer, como nossa

capacidade para a linguagem (os detalhes variam de cultura para cultura, mas a

estrutura subjacente da gramática é universal). Como veremos, o modo como

as pessoas respondem a esses testes morais, e sua incapacidade de articular

suas motivações, parece ser em grande parte independente de suas crenças

religiosas ou da ausência delas. A mensagem do livro de Hauser, para antecipá-

la nas próprias palavras dele, é essa: "Orientando nossos juízos morais há uma

gramática moral universal, uma faculdade da mente que evoluiu ao longo de

milhões de anos, até incluir um conjunto de princípios para formar uma série

de sistemas morais possíveis. Assim como com a linguagem, os princípios que

compõem nossa gramática moral voam abaixo do radar de nossa consciência".

São típicas dos dilemas morais de Hauser as variações sobre o tema do

vagão ou bonde descontrolado que ameaça matar um grupo de pessoas. A

história mais simples propõe que uma pessoa, Denise, está num centro de

controle em condições de mandar o bonde para um desvio, salvando portanto

a vida das cinco pessoas presas na linha principal. Infelizmente há um homem

preso no desvio. Mas, como ele é apenas um, menos que as cinco pessoas

presas na linha principal, a maioria das pessoas concorda que é moralmente

permissível, se não obrigatório, que Denise mexa no controle e salve os cinco,

matando o homem do desvio. Ignoramos possibilidades hipotéticas como a de

que o homem no desvio possa ser Beethoven, ou um amigo íntimo.

As elaborações sobre a experiência de pensamento apresentam uma série

de enigmas morais cada vez mais provocadores. E se o vagão puder ser contido

pelo lançamento de um peso em seu caminho, de cima de urna ponte? É fácil:

obviamente temos que jogar o peso. Mas e se o único peso disponível for um

homem muito gordo que esteja na ponte admirando o pôr-do-sol? Quase todo

mundo concorda que é imoral empurrar o gordo ponte abaixo, mesmo que,

de determinado ponto de vista, o dilema possa parecer paralelo ao de Denise,

em que a ação de mexer no controle mata um para salvar cinco. A maioria de nós

tem a forte intuição de que há uma diferença crucial entre os dois casos, em-
bora talvez não consigamos articular qual ela é.

Empurrar o gordo ponte abaixo remete a outro dilema analisado por

Hauser. Cinco pacientes de um hospital estão morrendo, cada um da falência de

um órgão diferente. Cada um seria salvo se um doador daquele órgão

específico pudesse ser encontrado, mas não há nenhum disponível. O cirurgião

percebe então que há um homem saudável na sala de espera, com todos os

cinco órgãos em boas condições e adequados para o transplante. Nesse caso,

é quase impossível encontrar alguém que esteja disposto a dizer que o ato

moral é matar um para salvar os cinco.

Assim como com o gordo da ponte, a intuição que a maioria de nós tem

é que um observador inocente não deve ser subitamente sugado por uma

situação desafortunada e usado pelo bem de outras pessoas sem o seu

consentimento. Immanuel Kant articulou o famoso princípio de que um ser

racional jamais deve ser usado como um mero meio para um fim, sem seu

consentimento, mesmo que esse fim seja beneficiar outras pessoas. Parece vir

daí a diferença crucial entre o caso do gordo da ponte (ou o homem da sala de

espera do hospital) e o homem no desvio de Denise. O gordo da ponte está

sendo positivamente usado como forma de conter o avanço do vagão. Isso

viola claramente o princípio kantiano. A pessoa no desvio não está sendo

usada, apenas tem .o azar de estar nele. Mas, quando a distinção é colocada

dessa forma, por que ela nos satisfaz? Para Kant, era um absoluto moral. Para

Hauser isso faz parte de nós, colocado em nós pela evolução.

As situações hipotéticas envolvendo o vagão desgovernado vão se

tornando cada vez mais engenhosas, e os dilemas morais equivalentemente

mais tortuosos. Hauser contrasta os dilemas enfrentados por indivíduos

hipotéticos chamados Ned e Oscar. Ned está ao lado da linha do trem.

Diferentemente de Denise, que podia mandar o vagão para um desvio, o

controle de Ned o manda para um desvio circular que volta para a linha

principal pouco antes das cinco pessoas. Mudar simplesmente a direção não

adianta: o vagão vai bater nos cinco de qualquer jeito quando o desvio voltar

para a linha principal. No entanto, enquanto a coisa acontece, há um homem

extremamente gordo no desvio circular, que é pesado o suficiente para parar

o bonde. Deveria Ned mexer no controle e desviar o trem? A intuição da

maioria das pessoas diz que não. Mas qual é a diferença entre o dilema de Ned e

o de Denise? Presume-se que as pessoas estejam intuitivamente aplicando o

princípio de Kant. Denise desvia o vagão de atropelar as cinco pessoas, e a vítima

infeliz do desvio é um "dano colateral", para usar o adorável termo

rumsfeldiano. Ele não está sendo usado por Denise para salvar os outros. Ned

está usando o homem gordo para deter o vagão, e a maioria das pessoas

(talvez sem pensar), junto com Kant (que pensou com todos os detalhes),

encara isso como uma diferença crucial.

A diferença é evidenciada novamente pelo dilema de Oscar. A situação de

Oscar é idêntica à de Ned, com a exceção de que há um grande peso de ferro no

desvio circular da pista, pesado o suficiente para deter o vagão. É claro que

Oscar não deve ter problemas para decidir mexer no controle e desviar o

bonde. Exceto pelo fato de que há uma pessoa caminhando na frente do peso

de ferro. Ela certamente morrerá se Oscar acionar o desvio, assim como o

homem gordo de Ned morreria. A diferença é que o andarilho de Oscar não está

sendo usado para conter o vagão: ele é um dano colateral, assim como no

dilema de Denise. Da mesma forma que Hauser, e da mesma forma que a

maioria dos sujeitos das experiências de Hauser, acho que Oscar pode acionar o

controle, mas Ned não. Mas também acho bastante difícil justificar minha

intuição. A tese de Hauser é que esse tipo de intuição moral freqüentemente

não é pensado, mas que o sentimos com contundência do mesmo jeito, por

causa de nossa herança evolutiva.

Numa incursão intrigante na antropologia, Hauser e seus colegas

adaptaram seus experimentos morais aos kuna, uma pequena tribo da

América Central que mantém pouco contato com os ocidentais e não possui

religião formal. Os pesquisadores mudaram a experiência de pensamento do

"vagão na linha de trem" para equivalentes mais adequados, como crocodilos

nadando na direção de canoas. Com as pequenas diferenças correspondentes,

os kuna mostram os mesmos juízos morais que a maioria de nós.

Hauser também especulou, de especial interesse para este livro, se as

pessoas religiosas têm intuições morais diferentes das dos ateus. Se tiramos

nossa moralidade da religião, certamente deveria haver diferença. Mas parece

que não há. Hauser, trabalhando com o filósofo moral Peter Singer,87 concentrou-
se em três dilemas hipotéticos e comparou os veredictos de ateus com os de

pessoas religiosas. Em cada um dos casos, pediu-se aos entrevistados que

escolhessem qual atitude hipotética seria moralmente "obrigatória",

"permissível" ou "proibida". Os três dilemas eram:

1 O dilema de Denise. Noventa por cento das pessoas disseram que era

permissível desviar o vagão, matando um para salvar cinco.

2 Você vê uma criança se afogando num lago e não há nenhuma outra

ajuda à vista. Você pode salvar a criança, mas suas calças ficarão

arruinadas no processo. Noventa e sete por cento concordaram que

você deve salvar a criança (o incrível é que 3% aparentemente

prefeririam salvar as calças).

3 O dilema do transplante de órgãos descrito anteriormente. Noventa e

sete por cento dos entrevistados concordaram que é moralmente

proibido capturar a pessoa saudável da sala de espera e matá-la para

usar seus órgãos, salvando assim cinco pessoas.

A principal conclusão do estudo de Hauser e Singer foi que não há

diferença estatisticamente significativa entre ateus e crentes religiosos na

elaboração desses juízos. Esse fato parece compatível com a opinião, minha e

de muitas outras pessoas, de que não precisamos de Deus para sermos bons

— ou maus.

SE DEUS NÃO EXISTE, POR QUE SER BOM?

Apresentada assim, a pergunta soa realmente ignóbil. Quando uma

pessoa religiosa dirige-a desse jeito para mim (e muitas fazem isso), minha

tentação imediata é lançar o seguinte desafio: "Você realmente quer me dizer

que o único motivo para você tentar ser bom é para obter a aprovação e a

recompensa de Deus, ou para evitar a desaprovação dele e a punição? Isso não é

moralidade, é só bajulação, puxação de saco, estar peocupado com a grande

câmera de vigilância dos céus, ou com o pequeno grampo de dentro da sua

cabeça que monitora cada movimento seu, até seus pensamentos mais

ordinários". Como disse Einstein, "se as pessoas são boas só porque temem a

punição, e esperam a recompensa, então nós somos mesmo uns pobres

coitados". Michael Shermer, em The science of good and evil, acha que a per-
gunta encerra o debate. Se você acha que, na ausência de Deus, "cometeria

roubos, estupros e assassinatos", revela-se uma pessoa imoral, "e faríamos bem

em nos manter bem longe de você". Se, por outro lado, você admite que

continuaria sendo uma boa pessoa mesmo quando não estiver sob a vigilância

divina, você destruiu fatalmente a alegação de que Deus é necessário para

que sejamos bons. Suspeito que boa parte das pessoas religiosas realmente ache

que a religião é o que as motiva a serem boas, especialmente se elas

pertencem a uma daquelas crenças que exploram sistematicamente a culpa

pessoal.

A mim me parece que é preciso uma dose muito baixa de auto-estima

para achar que, se a crença em Deus desaparecesse repentinamente do

mundo, todos nós nos tornaríamos hedonistas insensíveis e egoístas, sem

nenhuma bondade, caridade, generosidade, nada que mereça o nome de

bondade. Acredita-se que Dostoiévski fosse dessa opinião, supostamente

devido a algumas declarações que ele colocou na boca de Ivan Karamázov:

[Ivan] observou com solenidade que não existia absolutamente nenhuma lei da natureza

que fizesse o homem amar a humanidade, e que, se o amor realmente existia e havia

existido no mundo até então, não era por causa da lei natural, mas só porque o homem

acreditava em sua própria imortalidade. Ele acrescentou, num adendo, que era

exatamente aquilo que constituía a lei natural, ou seja, que uma vez que a fé do homem

em sua própria imortalidade fosse destruída, não seria só sua capacidade para o amor que

se esgotaria, mas também as forças vitais que sustentam a vida neste planeta. Além do

mais, nada seria imoral, tudo seria permitido, até a antropofagia. E, por fim, como se tudo

isso não bastasse, ele declarou que para cada pessoa, como eu e você, por exemplo, que

não acredita nem em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei natural está destinada a

transformar-se imediatamente no exato contrário da lei baseada na religião que a

precedia, e que o egoísmo, mesmo levando à perpetração de crimes, não seria somente

per-missível, mas seria reconhecido como a raison d'être essencial, mais racional e mais

nobre da condição humana.88

Talvez por ingenuidade tendi para uma visão menos cínica da natureza

humana que a de Ivan Karamázov. Será que realmente precisamos de

policiamento — seja feito por Deus ou por nós mesmos — para que não nos

comportemos de modo egoísta e criminoso? Quero muito acreditar que não

preciso dessa vigilância — nem você, caro leitor. Por outro lado, só para enfra-
quecer nossa convicção, leia a experiência sobre a desilusão de Steven Pinker

numa greve policial em Montreal, descrita por ele em Tabula rasa:

Quando eu era adolescente, no orgulhosamente pacífico Canadá, durante os românticos

anos 1960, era um defensor fiel da anarquia de Bakunin. Ria do argumento de meus pais

de que se o governo entregasse as armas o caos tomaria conta de tudo. Nossas previsões

concorrentes foram postas à prova às oito horas da manhã do dia 17 de outubro de 1969,

quando a polícia de Montreal entrou em greve. Às onze e vinte, o primeiro banco tinha

sido roubado. Ao meio-dia a maioria das lojas do centro da cidade havia fechado as portas

por causa dos saques. Algumas horas depois, taxistas incendiaram a garagem de um

serviço de aluguel de limusines que concorria com eles por passageiros do aeroporto, um

atirador assassinou um policial da província, baderneiros invadiram hotéis e restaurantes e

um médico matou um ladrão em sua casa, no subúrbio. No fim do dia, seis bancos haviam

sido assaltados, cem lojas haviam sido, saqueadas, doze incêndios haviam sido

provocados, quilos e quilos de vidros de vitrines haviam sido quebrados e 3 milhões de

dólares em prejuízos haviam sido registrados, até que as autoridades da cidade tiveram

que chamar o Exército e, é claro, a polícia montada para restabelecer a ordem. Esse teste

empírico decisivo deixou minha política em frangalhos [...]

Talvez eu também seja uma Poliana por acreditar que as pessoas

permaneceriam boas se não fossem observadas nem policiadas por Deus. Por

outro lado, a maioria da população de Montreal supostamente acreditava em

Deus. Por que o medo de Deus não as conteve quando os policiais terrenos

foram temporariamente tirados de cena? A greve de Montreal não foi uma

ótima experiência natural para testar a hipótese de que a crença em Deus nos

torna bons? Ou talvez o sarcástico H. L. Mencken tivesse razão quando disse:

"As pessoas dizem que precisamos de religião, mas o que elas realmente querem

dizer é que precisamos de polícia".

É óbvio que não foi todo mundo em Montreal que se comportou mal

quando a polícia saiu de cena. Seria interessante saber se houve alguma

tendência estatística, por mais leve que fosse, para que os crentes na religião

tenham saqueado e depredado menos que os descrentes. Minha previsão

desinformada seria a do contrário. Muitas vezes se diz, cinicamente, que não há

ateus nas trincheiras. Estou inclinado a desconfiar (com base em alguma

evidência, embora possa ser simplista tirar conclusões delas) que haja bem

poucos ateus nas prisões. Não estou necessariamente afirmando que o

ateísmo aumenta a moralidade, embora o humanismo — o sistema ético que

freqüentemente acompanha o ateísmo — provavelmente o faça. Outra boa

possibilidade é que o ateísmo esteja correlacionado com algum terceiro fator,

como um nível maior de instrução, inteligência ou ponderação, que pode

contrabalançar impulsos criminosos. As evidências existentes retiradas de

pesquisas certamente não sustentam a idéia comum de que a religiosidade

está diretamente relacionada à moralidade. Evidências correlacionais nunca são

conclusivas, mas os dados seguintes, descritos por Sam Harris em seu Carta a uma

nação cristã, são de qualquer forma impressionantes.

Embora a filiação partidária nos Estados Unidos não seja um indicador perfeito da

religiosidade, não é segredo que os "estados vermelhos [republicanos]" são vermelhos

principalmente devido à enorme influência política dos cristãos conservadores. Se hou-
vesse uma forte correlação entre o conservadorismo cristão e a saúde da sociedade, era de

esperar que víssemos algum sinal dela nos estados vermelhos. Não vemos. Das 55 cidades

com as taxas mais baixas de crimes violentos, 62% estão nos estados "azuis" [democratas]

e 38% estão nos estados "vermelhos" [republicanos]. Das 25 cidades mais perigosas, 76%

ficam nos estados vermelhos, e 24% nos estados azuis. Aliás, três das cinco cidades mais

perigosas dos Estados Unidos ficam no devoto estado do Texas. Os doze estados com taxas

mais elevadas de arrombamentos são vermelhos. Vinte e quatro dos 29 estados com as

mais elevadas taxas de assalto são vermelhos. Dos 22 estados com as maiores taxas de

assassinato, dezessete são vermelhos.*

Pesquisas sistemáticas tendem a sustentar esses dados correlacionais.

Gregory S. Paul, no Journal of Religion and Society (2005), comparou dezessete

nações economicamente desenvolvidas e chegou à devastadora conclusão de

que "taxas mais altas de crença num criador e de culto a ele se correlacionam

com taxas mais altas de homicídio, mortalidade juvenil e precoce, taxas de

infecção por doenças sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e

aborto nas democracias prósperas". Dan Dennett, em Quebrando o encanto,

faz comentários sardônicos sobre esses estudos em geral:

Inútil dizer que esses resultados abalam tão fortemente as alegações-padrão de que há

uma virtude moral maior entre os religiosos que até surgiu uma onda considerável de

pesquisas adicionais iniciadas por organizações religiosas que tentam refutá-las [...] uma

coisa de que podemos ter certeza é que, se houver um relacionamento positivo e

significativo entre o comportamento moral e a filiação, a prática ou a crença religiosa, ele

logo será descoberto, já que tantas organizações religiosas estão tão ansiosas para confir-
mar cientificamente suas convicções tradicionais sobre a questão. (Elas estão bastante

impressionadas com o poder da ciência para detectar a verdade quando ela apoia aquilo

em que já acreditam.) Cada mês que passa sem que apareça essa demonstração reforça a

suspeita de que as coisas simplesmente não são assim.

A maioria das pessoas sensatas concorda que a moralidade na ausência

de policiamento é mais verdadeiramente moral que o tipo de falsa moralidade

* Note que essas convenções para as cores nos Estados Unidos são exatamente o contrário das da Grã-

Bretanha, onde o azul é a cor do Partido Conservador e o vermelho, assim como no resto do mundo, é a cor

tradicionalmente associada com a esquerda política.

que desaparece assim que a polícia entra em greve ou que a câmera de

vigilância é desligada, seja a câmera de verdade, monitorada na delegacia, ou

uma câmera imaginária no céu. Mas talvez seja injusto interpretar a pergunta "Se

não há Deus, por que se dar ao trabalho de ser bom?" de modo tão cínico.* Um

pensador religioso poderia oferecer uma interpretação mais genuinamente

moral, na linha da seguinte declaração de um apologista imaginário. "Se você

não acredita em Deus, não acredita que existem padrões absolutos de

moralidade. Com a maior boa vontade do mundo, você pode até querer ser uma

boa pessoa, mas corno vai decidir o que é bom e o que é ruim? Só a religião pode

fornecer definitivamente os padrões de bem e mal. Sem a religião você precisará

construí-los. Isso seria a moralidade sem normas: uma moralidade a olho. Se a

moralidade não é nada mais que uma questão de opção, Hitler poderia alegar

estar sendo moral por seus próprios padrões inspirados na eugenia, e tudo o que

o ateu pode fazer é ter uma escolha pessoal e viver sob uma orientação

diferente. O cristão, o judeu ou o muçulmano, pelo contrário, podem afirmar que

o mal tem um sentido absoluto, que vale para todos os tempos e todos os luga-
res, segundo o qual Hitler era completamente mau."

Mesmo que fosse verdade que precisamos de Deus para ser bons, isso

obviamente não tornaria a existência de Deus mais provável, apenas mais

desejável (muita gente não consegue enxergar a diferença). Mas não é disso que

se trata aqui. Meu apologista imaginário da religião não precisa admitir que

puxar o saco de Deus é a motivação religiosa para fazer o bem. A alegação dele é

que, venha de onde vier a motivação para fazer o bem, sem Deus não haveria

padrão para decidir o que é o bem. Cada um de nós criaria nossa própria

definição de bem e agiria de acordo com ela. Princípios morais que se baseiam

somente na religião (em oposição, por exemplo, à "regra de ouro", que

normalmente é associada à religião mas que pode ter outra origem) podem ser

chamados de absolutistas. Bem é bem e mal é mal, e não vamos ficar decidindo

casos isolados, por exemplo, pelo fato de alguém sofrer ou não. Meu apologista

* H. L. Mencken, de novo com seu sarcasmo característico, definiu a consciência como a voz interior que nos

adverte de que alguém pode estar olhando.

da religião defenderia que só a religião pode fornecer a base para que se decida

o que é o bem.

Alguns filósofos, notadamente Kant, tentaram tirar morais absolutas de

fontes não religiosas. Embora fosse religioso, como era quase inevitável naquela

época,* Kant tentou basear a moralidade no dever pelo dever, e não em nome

de Deus. Seu famoso imperativo categórico convoca-nos a "agir somente

segundo a máxima tal que possamos ao mesmo tempo querer que se torne lei

universal". Isso funciona direitinho para o exemplo de mentir.

Imagine um mundo em que as pessoas mintam por princípio, onde a

mentira seja considerada uma coisa boa e moral. Num mundo assim, mentir

deixaria de fazer sentido. Mentir precisa por definição da pressuposição da

verdade. Se um princípio moral é algo que devemos desejar que todos sigam,

mentir não pode ser um princípio moral, porque o próprio princípio desmorona-
ria, sem sentido. Mentir, como norma de vida, é inerentemente instável. Em

termos mais gerais, o egoísmo, ou o parasitismo explorador da boa vontade dos

outros, pode funcionar para mim, um indivíduo egoísta isolado, e me dar

satisfação pessoal. Mas não posso desejar que todo mundo adote o parasitismo

egoísta como princípio moral, no mínimo porque senão eu não teria ninguém

para explorar.

O imperativo kantiano parece funcionar para o dizer a verdade e para

alguns outros casos. Não é tão fácil assim ampliá-lo para a moralidade em geral.

Apesar de Kant, é tentador concordar com meu apologista hipotético que morais

absolutistas costumam ser motivadas pela religião. É sempre errado tirar uma

paciente terminal de seu sofrimento a pedido dela própria? É sempre errado

fazer amor com um integrante de seu próprio sexo? É sempre errado matar um

embrião? Há quem ache que sim, e suas bases são absolutas. Eles não toleram

argumentação nem debate. Qualquer um que discorde merece ser morto:

metaforicamente, é claro, não literalmente — exceto no caso de alguns médicos

de clínicas de aborto americanas (veja o próximo capítulo). Felizmente, no

entanto, as morais não têm de ser absolutas.

* Essa é a interpretação-padrão das idéias de Kant. O destacado filósofo A. C. Grayling, porém, argumentou

plausivelmente (New Humanist, julho-agosto de 2006) que, embora Kant seguisse publicamente as convenções

religiosas de seu tempo, na verdade ele era ateu.

Os filósofos morais são os profissionais em se tratando de pensar sobre o

certo e o errado. Como disse sucintamente Robert Hinde, eles concordam que

"os preceitos morais, embora não necessariamente construídos pela razão,

devem ser defensáveis pela razão".89 Eles se classificam de muitas maneiras, mas

na terminologia moderna a principal divisão é entre "deontologistas" (como

Kant) e "conseqüencialistas" (incluindo "utilitaristas" como Jeremy Bentham,

1748-1832). Deontologia é um nome bonito para a crença de que a moralidade

consiste em obedecer a regras. É literalmente a ciência do dever, do grego para

"aquilo que é obrigatório". A deontologia não é bem a mesma coisa que

absolutismo moral, mas para a maioria dos propósitos de um livro sobre religião

não há necessidade de enfatizar a distinção. Os absolutistas acreditam que

existem absolutos do certo e do errado, imperativos cuja correção não faz

referência a suas conseqüências. Os conseqüencialistas acham, mais

pragmaticamente, que a moralidade de uma ação deve ser julgada por suas

conseqüências. Uma versão do conseqüencialismo é o utilitarismo, a filosofia as-
sociada a Bentham, a seu amigo James Mill (1773-1836) e ao filho dele, John

Stuart Mill (1806-73). O utilitarismo é freqüentemente resumido na máxima de

Bentham, que é de uma imprecisão infeliz: "A maior felicidade para o maior

número de pessoas é a fundação das morais e da legislação".

Nem todo absolutismo deriva da religião. De qualquer maneira, é muito

difícil defender morais absolutistas em outras bases que não as religiosas. O

único concorrente em que consigo pensar é o patriotismo, especialmente em

tempos de guerra. Como disse o destacado cineasta espanhol Luis Buñuel, "Deus

e a Pátria são um time imbatível; eles quebram todos os recordes de opressão e

derramamento de sangue". Os oficiais que trabalham no recrutamento apelam

fortemente ao senso de dever patriótico de suas vítimas. Na Primeira Guerra

Mundial, as mulheres entregavam plumas brancas para jovens que não

estivessem fardados.

Oh, não queremos perdê-lo, mas achamos que você deve ir,

Pois seu rei e seu país precisam que você vá. *

* "Oh, we don't want to lose you, but we think you ought to go,/ For your King and your country both need you

só." Trecho de uma música usada pela Inglaterra durante a Primeira Guerra para incentivar o alistamento. (N.

T.)

As pessoas ignoravam as objeções conscienciosas, mesmo as do país

inimigo, porque o patriotismo era tido como uma virtude absoluta. É difícil ser

mais absoluto que o "Meu país, certo ou errado" do soldado profissional, pois o

slogan faz com que você se comprometa a matar quem quer que os políticos de

algum tempo futuro resolvam chamar de inimigos. O raciocínio conse-
qüencialista pode influenciar a decisão política de ir à guerra, mas, uma vez

declarada a guerra, o patriotismo absoluto toma conta com uma força que não

se vê fora da religião. Um soldado que permitir que suas idéias de moralidade

conseqüencialista o convençam a não partir para o ataque tem grande

probabilidade de enfrentar a corte marcial ou até de ser executado.

O ponto de partida para esta discussão sobre filosofia moral foi uma

afirmação religiosa hipotética de que, sem um Deus, as morais são relativas e

arbitrárias. Deixando de lado Kant e outros filósofos morais sofisticados, e dando

o devido reconhecimento ao fervor patriótico, a fonte preferida da moralidade

absoluta é normalmente algum tipo de livro sagrado, interpretado como

detentor de uma autoridade que supera em muito sua capacidade histórica de

justificá-la. Na realidade, os adeptos da autoridade das Escrituras demonstram

uma curiosidade perturbadoramente pequena sobre as origens históricas

(comumente duvidosas) de seus livros sagrados.

 

Continuação do capítulo,mostrando que a moralidade não vem da religião:

 

Spoiler
Existem duas maneiras pelas quais as Escrituras podem servir de fonte para os princípios morais ou normas para a vida. Uma é por instrução direta, como por exemplo com os Dez Mandamentos, que são objeto de tanta briga nas guerras culturais do interior americano. A outra é pelo exemplo: Deus, ou algum outro personagem bíblico, pode servir como alguém em quem se espelhar. Os dois caminhos escriturais, se seguidos religiosamente (o advérbio está sendo usado em seu sentido metafórico, mas lembrando sua origem), incentivam um sistema de princípios morais que qualquer pessoa moderna e civilizada, seja ela religiosa ou não, acharia — não tenho como dizer de modo mais delicado — repulsivo.
 
É preciso dizer, para ser justo, que grande parte da Bíblia não é sistematicamente cruel, mas simplesmente estranha, como seria de esperar de uma antologia caótica de documentos desconjuntados, escrita, revisada, traduzida, distorcida e "melhorada" por centenas de autores anónimos, editores e copiadores, que desconhecemos e que não se conheciam entre si, ao longo de nove séculos.
 
Isso pode explicar uma parte das esquisitices da Bíblia. Mas infelizmente é esse mesmo volume estranho que fanáticos religiosos consideram a fonte infalível de nossos princípios morais e nossas normas para viver.
 
Quem pretende basear sua moralidade literalmente na Bíblia ou nunca a leu ou não a entendeu, como observou bem o bispo John Shelby Spong, em The sins of scripture [Os pecados das Escrituras]. O bispo Spong, aliás, é um bom exemplo de um bispo liberal cujas crenças são tão avançadas que chegam a ser quase irreconhecíveis para a maioria dos que se autodenominam cristãos. Um equivalente britânico é Richard Holloway, que se aposentou recentemente como bispo de Edimburgo. O bispo Holloway chega a se descrever como um "cristão em recuperação". Mantive uma discussão pública com ele em Edimburgo, que foi um dos encontros mais estimulantes e interessantes que já tive.
 
 
O ANTIGO TESTAMENTO
 
 
Comece no Gênesis com a adorada história de Noé, derivada do mito babilónico de Uta-Napishtim e conhecida em mitologias mais antigas de várias culturas. A lenda dos animais entrando na arca aos pares é linda, mas a moral da história de Noé é assustadora. Deus condenou os seres humanos e resolveu (com a exceção de uma família) afogar todos eles, incluindo as crianças, e também, por via das dúvidas, o resto dos animais (presumivelmente inocentes).
 
É claro que os teólogos, irritados, protestarão dizendo que não se interpreta mais o livro do Gênesis em termos literais. Mas é exatamente isso que estou dizendo! Escolhemos em que pedacinhos das Escrituras devemos acreditar, e quais pedacinhos descartar, por símbolos ou alegorias. Essa escolha é uma decisão pessoal, tanto quanto a decisão do ateu de seguir este ou aquele preceito moral foi uma decisão pessoal, sem nenhum fundamento absoluto. Se uma coisa é "moralidade a olho", a outra também é.
 
De qualquer maneira, apesar das boas intenções do teólogo sofisticado, um número assustadoramente grande de pessoas ainda interpreta as Escrituras, incluindo a história de Noé, de forma literal. De acordo com o Gallup, entre elas estão aproximadamente 50% do eleitorado dos Estados Unidos. Também estão, sem dúvida, muitos dos religiosos asiáticos que atribuíram o tsunami de 2004 não a um movimento tectônico, mas aos pecados humanos, desde a bebida e a dança nos bares até a violação de alguma regra estúpida do Shabat.
 
Afundados na história de Noé e ignorantes de tudo o que não seja o aprendizado bíblico, como podemos condená-los? Toda a educação deles levou-os a encarar os desastres naturais como coisas ligadas aos problemas humanos, castigos pelas infrações humanas, e não algo tão impessoal como placas tectônicas. Aliás, que egocentrismo presunçoso é acreditar que eventos sismológicos, da escala em que um deus (ou uma placa tectônica) tem de atuar, sempre têm de estar conectados aos seres humanos. Por que um ser divino, preocupado com a criação e a eternidade, iria se incomodar com as transgressõezinhas dos homens? Nós, seres humanos, damo-nos tanta importância que até elevamos nossos minúsculos "pecadilhos" ao nível de relevância cósmica!
 
Quando entrevistei, para a televisão, o reverendo Michael Bray, um proeminente ativista americano antiaborto, perguntei a ele por que os cristãos evangélicos são tão obcecados pelas inclinações sexuais pessoais como a homossexualidade, que são coisas que não interferem na vida de mais ninguém. A resposta dele invocava certa autodefesa. Cidadãos inocentes correm o risco de se transformar em danos colaterais quando Deus resolver fazer um desastre natural atingir uma cidade porque ela abriga pecadores. Em 2005, a bela cidade de Nova Orleans foi catastroficamente inundada depois da passagem de um furacão, o Katrina. Houve registros de que o reverendo Pat Robertson, um dos televangelistas mais conhecidos dos Estados Unidos, que já foi candidato a presidente, responsabilizou uma comediante lésbica que por acaso morava em Nova Orleans pelo furacãoEra de esperar que um Deus onipotente adotasse uma abordagem um pouco mais precisa para destruir pecadores: um infarto discreto, talvez, em vez da destruição a granel de uma cidade inteira só porque calhou de ela ser o domicílio de uma comediante lésbica.
 
Em novembro de 2005, os cidadãos de Dover, na Pensilvânia, derrubaram pelo voto, da diretoria da escola local, a lista inteira de fundamentalistas que havia dado notoriedade à cidade, para não dizer ridicularizado-a, ao tentar tornar obrigatório o ensino do design inteligente. Quando Pat Roberson soube que os fundamentalistas tinham sido democraticamente derrotados nas urnas, fez uma séria advertência a Dover: "Gostaria de dizer aos bons cidadãos de Dover que, se houver um desastre em sua região, não apelem a Deus. Vocês acabaram de rejeitá-lo de sua cidade, e não questionem por que ele não os ajudou quando os problemas começarem, se eles começarem, e não estou dizendo que vão começar. Mas, se começarem, lembrem-se de que vocês acabaram de votar para que Deus deixasse sua cidade. E, se isso acontecer, não peçam a ajuda dele, porque ele pode não estar lá."
 
Pat Robertson seria só uma piada inofensiva se fosse menos representativo daqueles que hoje são os detentores do poder e da influência nos Estados Unidos.
 
Na destruição de Sodoma e Gomorra, o equivalente a Noé, escolhido para ser poupado junto com sua família por ser especialmente correto, foi Ló, sobrinho de Abraão. Dois anjos foram enviados a Sodoma para avisar Ló e dizer que ele saísse da cidade antes da chegada do enxofre. Ló recebeu os anjos com hospitalidade, e então todos os homens de Sodoma reuniram-se em torno da casa dele e exigiram que Ló entregasse os anjos para que eles pudessem (o que mais?) sodomizá-los: "Onde estão os homens que vieram para tua casa esta noite? Traze-os para que deles abusemos" (Gênesis 19, 5). A bravura de Ló ao recusar-se a ceder à exigência sugere que Deus deve até ter tido razão ao considerá-lo o único homem de bem de Sodoma. Mas a auréola de Ló fica manchada com os termos de sua recusa: "Rogo-vos, meus irmãos, que não façais mal; tenho duas filhas, virgens, e vo-las trarei; tratai-as como vos parecer, porém nada façais a estes homens, porquanto se acham sob a proteção de meu teto(Gênesis 19, 7-8). Por mais estranha que a história possa parecer, ela certamente nos indica alguma coisa sobre o respeito reservado às mulheres nessa cultura intensamente religiosa.
 
No final, a oferta que Ló fez da virgindade de suas filhas mostrou-se desnecessária, pois os anjos conseguiram afastar os agressores cegando-os por milagre. Eles então advertiram Ló para que partisse imediatamente com sua família e seus animais, porque a cidade estava prestes a ser destruída. A família inteira escapou, com a exceção da pobre mulher de Ló, que o Senhor transformou num pilar de sal por ter cometido a ofensa — relativamente leve, seria de imaginar — de olhar para trás para ver os fogos de artifício.
 
As duas filhas de Ló fazem uma breve reaparição na história. Depois de a mãe delas ter sido transformada num pilar de sal, elas moram com o pai numa caverna, no alto de uma montanha. Carentes de companhia masculina, elas decidem embebedar o pai e copular com ele. Ló não percebeu quando sua filha mais velha chegou a sua cama ou quando saiu dela, mas não estava bêbado demais para engravidá-la. Na noite seguinte as duas filhas combinaram que era a vez da mais nova. Novamente Ló estava bêbado demais para perceber, e a engravidou também (Gênesis 19, 31-36). Se essa família tão perturbada era o melhor que Sodoma tinha a oferecer em termos de princípios morais, dá até para começar a sentir certa solidariedade para com Deus e seu enxofre punitivo.
 
A história de Ló e os sodomitas ressoa de forma assustadora no capítulo 19 do livro dos Juizes, quando um levita (padre) não identificado viajava com sua concubina em Jebus. Eles passaram a noite na casa de um velho hospitaleiro. Enquanto jantavam, os homens da cidade chegaram e bateram à porta, exigindo que o velho entregasse seu convidado "para que dele abusemos". Praticamente com as mesmas palavras de Ló, o velho disse: "Não, irmãos meus, não façais semelhante mal; já que o homem está em minha casa, não façais tal loucura. Minha filha virgem e a concubina dele trarei para fora; humilhai-as e fazei delas o que melhor vos agrade; porém a este homem não façais semelhante loucura" (Juizes 19, 23-24). Aparece novamente o ethos misógino, firme e forte. Acho o termo "humilhai-as" especialmente aterrador. Divirtam-se humilhando e estuprando minha filha e a concubina desse padre, mas mostrem o devido respeito por meu convidado, que, afinal de contas, é homem.
 
Apesar da semelhança entre as duas histórias, o dénouement foi menos feliz para a concubina do levita que para as filhas de Ló. O levita a entrega à multidão, que a estupra coletivamente a noite inteira: "E eles a forçaram e abusaram dela toda a noite até pela manhã; e, subindo a alva, a deixaram. Ao romper da manhã, vindo a mulher, caiu à porta da casa do homem, onde estava o seu senhor, e ali ficou até que se fez dia claro" (Juizes 19, 25-26). De manhã, o levita encontra a concubina prostrada na porta e diz, com o que hoje consideraríamos de uma aspereza insensível: "Levanta-te, e vamos". Mas ela não se moveu. Estava morta. Então ele "tomou de um cutelo e, pegando a concubina, a despedaçou por seus ossos em doze partes; e as enviou por todos os limites de Israel". Sim, você leu certo. Pode olhar em Juizes 19, 29.
 
Caridosamente, atribuamos de novo tudo isso à esquisitice onipresente da Bíblia. De fato, a história não é tão completamente maluca quanto parece. Havia um motivo — provocar vingança — e deu resultado, pois o incidente causou uma guerra de desforra contra a tribo de Benjamim, na qual, como o capítulo 20 de Juizes ternamente registra, mais de 60 mil homens foram mortos.
 
Essa história é tão parecida com a de Ló que não dá para não especular se algum fragmento do manuscrito sem querer não se misturou em algum escritório esquecido de um monastério: uma ilustração da proveniência errática dos textos sagrados.
 
O tio de Ló, Abraão, foi o pai de todas as três "grandes" religiões monoteístas. Seu status patriarcal faz com que ele possa ser considerado um exemplo a ser tomado, quase como Deus. Mas que moralista moderno ia querer seguir seu exemplo?
 
Relativamente cedo em sua vida longa, Abraão foi para o Egito para fugir da fome, com sua mulher, Sara. Ele percebeu que uma mulher tão bonita seria cobiçada pelos egípcios e que portanto sua própria vida, como marido dela, poderia ficar em perigo. Então decidiu fazê-la passar por sua irmã. Como tal, ela foi levada para o harém do faraó, e Abraão, em conseqüência, enriqueceu com o favorecimento do faraó. Deus desaprovou o pequeno arranjo, e enviou pragas sobre o faraó e sua casa (por que não sobre Abraão?). O faraó, compreensivelmente nervoso, exigiu saber por que Abraão não lhe contara que Sara era sua mulher. Ele então a devolveu a Abraão e expulsou os dois do Egito (Gênesis 12, 18-19).
 
O estranho é que aparentemente o casal tentou usar o mesmo golpe de novo, dessa vez com Abimeleque, rei de Gerar. Também ele foi induzido por Abraão a casar-se com Sara, novamente tendo sido levado a crer que ela era irmã de Abraão, não mulher dele (Gênesis 20, 2-5). Também ele manifestou sua indignação, em termos quase idênticos aos do faraó, e é difícil não se solidarizar com os dois. Seria a semelhança uma outra indicação da falta de confiabilidade do texto?
 
Esses episódios desagradáveis da história de Abraão não passam de pecadilhos se comparados à infame lenda do sacrifício de seu filho Isaac (as escrituras muçulmanas contam a mesma história sobre o outro filho de Abraão, Ismael). Deus determinou que Abraão transformasse seu filho querido numa oferenda em forma de fogo. Abraão construiu um altar, colocou lenha sobre ele e amarrou Isaac sobre a lenha. A faca assassina já estava em sua mão quando um anjo interveio dramaticamente, com a notícia de uma mudança de planos de última hora: Deus estava apenas brincando, no fim das contas, "tentando" Abraão e testando sua fé.
 
Um moralista moderno não poderia deixar de imaginar como uma criança conseguiria se recuperar de tamanho trauma psicológico. Pelos padrões da moralidade moderna [e lembremos que Deus, sendo atemporal, não pode estar preso às limitações culturais de povos primitivosessa história vergonhosa é ao mesmo tempo um exemplo de abuso infantil, intimidação em dois relacionamentos assimétricos de poder e o primeiro uso registrado da defesa de Nuremberg: "Eu só estava seguindo ordens".
 
Mesmo assim, a lenda é um dos grandes mitos fundadores das três religiões monoteístas. Mais uma vez, os teólogos modernos protestarão dizendo que a história do sacrifício de Isaac por Abraão não deve ser encarada como um fato literal. E, mais uma vez, a resposta adequada tem dois ladosEm primeiro lugar, muitíssima gente, até hoje, encara, sim, as Escrituras como fatos literais, e elas têm bastante poder político sobre o resto de nós, especialmente nos Estados Unidos e no mundo islâmico. Em segundo, se não for como fato literal, como deveríamos encarar a história? Como uma alegoria? Alegoria de quê, então? Certamente de nada digno de louvor. Como lição moral? Mas que tipo verdadeiro de princípio moral pode-se tirar dessa história apavorante?
 
Lembre-se de que só estou tentando dizer, por enquanto, que na verdade nós [incluindo os religiosos ainda não inteiramente psicóticos] não retiramos nossos princípios morais das Escrituras. Ou, se retiramos, escolhemos os trechos mais agradáveis daqueles textos e rejeitamos os desagradáveis. Mas aí precisamos ter algum critério independente para decidir quais trechos são os morais: um critério que, venha de onde vier, não pode vir da própria escritura, e está supostamente disponível para todos nós, sejamos ou não religiosos.
 
Os apologistas bem que tentam resgatar alguma decência para o personagem 'Deus' nessa história deplorável. Não foi bom que Deus tenha poupado a vida de Isaac no último minuto?
 
Na improvável possibilidade de algum de meus leitores ter sido convencido por esse exemplar obsceno de alegação, indico a ele outra história sobre o sacrifício humano, que teve um final mais infeliz. Em Juízes, capítulo 11, o líder militar Jefté fez uma troca com Deus combinando que, se Deus garantisse a vitória de Jefté sobre os amonitas, Jefté sacrificaria, sem falta, na fogueira, "aquele que sair primeiro da porta da minha casa e vier ao meu encontro, voltando eu". Jefté tinha mesmo a intenção de derrotar os amonitas ("uma grande derrota") e voltou para casa vitorioso. Como era de esperar, sua filha, única filha, saiu da casa para recebê-lo (com tambores e com danças) e — que pena — foi a primeira a da porta sair. Jefté rasgou suas roupas, compreensivelmente, mas não havia nada que ele pudesse fazer. Deus estava obviamente ansioso pela oferenda prometida, e dadas as circunstâncias a filha, respeitosamente, concordou em ser sacrificada [ou pelo menos isso é o que se diz, pois o mais provável é que ela tenha sido sacrificada à força bruta]. Ela só pediu permissão para ficar dois meses nas montanhas para lamentar sua virgindade. Ao fim desse período ela voltou, obediente, e Jefté a cozinhouDeus [o 'deus' do Antigo Testamento] não achou por bem intervir nesse caso.
 
A ira monumental de Deus sempre que seu povo flertava com um deus rival remete ao pior tipo de ciúme sexual, novamente não deve parecer a um moralista moderno um exemplo a ser seguido. A tentação da infidelidade sexual é prontamente compreensível, mesmo para aqueles que não sucumbem a ela, e está sempre presente na ficção e na dramaturgia, de Shakespeare às farsas. Mas a tentação aparentemente irresistível de nos prostituirmos com deuses estranhos é algo com que nós, modernos, temos dificuldade de nos solidarizar [e algo que demonstra que esse não era um povo sério, mas sim um bando de bobalhões estupidamente crédulos e supersticiosos, prontos a acreditar em qualquer besteira mística que se lhes dissesse]. Aos meus olhos ingénuos, "Amar a Deus sobre todas as coisas" seria um mandamento de fácil cumprimento: uma moleza, pode-se pensar, perto de "Não cobiçarás a mulher do próximo". Mesmo assim, em todo o Antigo Testamento, com a mesma regularidade previsível que numa farsa, basta Deus virar as costas por um minuto para os Filhos de Israel irem atrás de Baal, ou de alguma imagem esculpida. Ou, numa ocasião calamitosa, um bezerro de ouro...
 
Moisés, ainda mais que Abraão, é um candidato a exemplo para os seguidores de todas as três religiões monoteístas. Abraão pode ser o patriarca original, mas, se alguém deve ser chamado de fundador doutrinário do judaísmo e das religiões que derivaram dele, esse alguém é Moisés. Quando do episódio do bezerro de ouro, Moisés estava longe dali, em segurança, a caminho do monte Sinai, em comunhão com Deus e recebendo as tábuas de pedra esculpidas por ele. As pessoas lá embaixo (que estavam proibidas até de encostar na montanha sob pena de serem mortas) não perderam tempo: "Mas, vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, acercou-se de Arão e lhe disse: Levanta-te, faze-nos deuses que vão adiante de nós; pois, quanto a este Moisés, o homem que nos tirou do Egito, não sabemos o que lhe terá sucedido". (Êxodo 32, 1)
 
Arão conseguiu com que todos juntassem seu ouro, derreteu-o e fez um bezerro de ouro, divindade recém-inventada para a qual ele construiu então um altar, para que todos pudessem começar a fazer sacrifícios em nome dele. Bem, eles já deviam saber que não se podem fazer essas coisas assim, pelas costas de Deus. Ele pode estar lá no alto de uma montanha, mas é, afinal de contas, onisciente, e não perdeu tempo para despachar Moisés como seu policial. Moisés desceu a montanha correndo, carregando as tábuas de pedra em que Deus havia escrito os Dez Mandamentos. Quando chegou e viu o bezerro de ouro, ficou tão furioso que derrubou as tábuas e as quebrou (depois Deus lhe deu peças de reposição, então não houve problema). Moisés pegou o bezerro de ouro, queimou-o, reduziu-o a pó, misturou-o com água e fez que as pessoas o engolissem. Depois disse a todo mundo na devota tribo de Levi que pegasse uma espada e matasse o máximo de gente possível. O montante chegou a 3 mil, o que, seria de esperar, já devia ser o suficiente para apaziguar a ira ciumenta de Deus. Mas não, Deus ainda não estava satisfeito. No último verso desse terrível capítulo, seu golpe de despedida foi lançar uma praga contra as pessoas que haviam sobrado, "porque fizeram o bezerro que Arão fabricara".
 
O livro dos Números conta como Deus incitou Moisés a atacar os midianitas. Seu exército tratou de matar todos os homens, e incendiar todas as cidades midianitas, mas poupou as mulheres e as criançasEsse comedimento piedoso dos soldados enfureceu Moisés, e ele ordenou que todos os meninos fossem mortos, e todas as mulheres que não fossem virgens"Porém todas as meninas, e as jovens que não coabitaram com algum homem, deitando-se com ele, deixai-as viver para vós outros" (Números 31, 18) [para que vós possais estuprá-las até não aguentarem mais...]. Não, Moisés não era uma pessoa digna de ser tomada como exemplo por moralistas modernos.
 
Quando os autores religiosos modernos associam algum significado simbólico ou alegórico ao massacre dos midianitas, o simbolismo vai na direção errada. Os pobres midianitas, pelo menos pelo que dá para saber pelo relato bíblico, foram vítimas de um genocídio em suas próprias terras. Mas seu nome só sobrevive na doutrina cristã naquele hino famoso (que ainda consigo cantar de cor depois de cinqüenta anos, em duas melodias diferentes, ambos em tons tristemente menores):
Cristão, tu os vê
No terreno sagrado?
Como os soldados de Mídian
Vagueiam e vagueiam por lá?
Cristão, levanta-te e ataca-os,
Contabilizando só os ganhos, não as perdas;
Ataca-os em nome
Da sagrada cruz.
 
Coitados dos midianitas, massacrados e difamados, serão lembrados somente como símbolos poéticos da maldade universal num hino vitoriano.
 
O deus rival Baal parece ter sido sempre uma tentação sedutora para desviar a adoração. Em Números, no capítulo 25, muitos israelitas são convencidos por mulheres moabitas a servirem a Baal. Deus reage com sua fúria característica. Ele ordena a Moisés: "Toma todos os cabeças do povo, e enforca-os ao Senhor diante do sol, e o ardor da ira do Senhor se retirará de Israel". É impossível não se assombrar com a visão tão extraordinariamente draconiana que se tem do pecado de flertar com deuses rivais. Para nosso senso atual de valores e de justiça, ele parece um pecado pouco importante se comparado, por exemplo, a oferecer sua filha para uma gangue de estupradores [ou encostar a faca na garganta de um filho inocente só porque se 'ouviu vozes' mandando fazê-lo, como foi o caso do esquizofrênico Abraão...]. É mais um exemplo do distanciamento entre os princípios morais das Escrituras e os modernos (fica-se tentado a dizer civilizados). Ele é, claro, facilmente compreensível nos termos da teoria dos memes, e das características de que uma divindade precisa para sobreviver no universo memético.
 
A farsa tragicômica do ciúme maníaco de Deus contra outros deuses reaparece constantemente em todo o Antigo Testamento. Ela motiva os primeiros Dez Mandamentos (aqueles nas tábuas que Moisés quebrou: Êxodo 20, Deuteronômio 5), e é ainda mais proeminente nos mandamentos substitutos (bastante diferentes) que Deus entregou para substituir as tábuas quebradas (Êxodo 34). Depois de prometer expulsar de sua terra natal os infelizes amoritas, cananeus, eteus, perizeus, eveus e jebuseus, Deus vai ao que realmente interessa: deuses rivais!
 
"[...] os seus altares derrubareis, e as suas estátuas quebrareis, e os seus bosques cortareis. Porque não te inclinarás diante de outro deus; pois o nome do Senhor é Zeloso; é um Deus zeloso. Para que não faças aliança com os moradores da terra, e quando eles se prostituírem após os seus deuses, ou sacrificarem aos seus deuses, tu, como convidado deles, comas também dos seus sacrifícios. E tomes mulheres das suas filhas para os teus filhos, e suas filhas, prostituindo-se com os seus deuses, façam que também teus filhos se prostituam com os seus deuses. Não te farás deuses de fundição." (Êxodo 34, 13-17)
 
Eu sei, eu sei, é claro, os tempos mudaram, e nenhum líder religioso de hoje em dia (tirando os do Talibã ou seus equivalentes cristãos americanos) pensa como Moisés. Mas é isso que estou dizendo. Tudo o que estou afirmando é que a moralidade verdadeira, venha de onde vier, não se origina da Bíblia.
 
Os apologistas não podem sair pela tangente alegando que a religião fornece a eles alguma espécie de diretriz para definir o que é bom e o que é ruim — uma fonte privilegiada indisponível para os ateus. Eles não podem se safar dizendo isso, nem mesmo quando usam seu truque favorito, o de interpretar as Escrituras selecionadas como "simbólicas", e não literais. Por que critério alguém decide quais trechos são simbólicos e quais são literais?
 
limpeza étnica iniciada nos tempos de Moisés é elevada à fruição sangrenta no livro de Josué, um texto marcante pelos massacres sangrentos que registra e o apreço xenofóbico com que faz isso. Como diz aquela velha e bela canção [protestante], exultante: "Josué lutou na batalha de Jericó, e as muralhas ruíram [...] Não há ninguém como o velho e bom Josué, na batalha de Jericó".
 
O bom e velho Josué não sossegou enquanto "tudo quanto havia na cidade eles destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento" (Josué 6, 21).
 
Mais uma vez, protestarão os teólogos, isso não aconteceu de verdade. Não mesmo — segundo a 'estória', as muralhas ruíram ao mero som dos homens gritando e tocando buzinas, portanto realmente não aconteceu de verdade —, mas não é essa a questão. A questão é que, verdade ou não, a Bíblia é mostrada a nós como a fonte de nossa moralidade. E a história bíblica da destruição de Jericó por Josué, e da invasão da Terra Prometida em geral, não se distingue em termos morais da invasão da Polónia por Hitler, ou dos massacres dos curdos e dos árabes dos pântanos do sul por Saddam Hussein.
 
A Bíblia pode ser uma obra de ficção interessante e poética [em alguns pontos], mas não é o tipo de livro que deveria ser dado às crianças para formar seus princípios morais. Por sinal, a história de Josué em Jericó é tema de uma interessante experiência sobre a moralidade infantil, que será discutida mais para a frente neste capítulo.
 
Não pense, aliás, que o personagem Deus na história cultivou alguma dúvida ou escrúpulo sobre os massacres e genocídios que acompanharam a tomada da Terra Prometida. Suas ordens, pelo contrário, como mostra o exemplo em Deuteronômio 20, eram brutalmente explícitas. Ele fazia uma clara distinção entre as pessoas que viviam na terra que era requisitada e as pessoas que viviam distantes dela. Estas últimas deveriam ser convidadas a se render pacificamente [e se entregarem à escravidão]. Se se recusassem, todos os homens deveriam ser mortos e as mulheres levadas para procriar. Num contraste com esse tratamento relativamente humano, veja o que era reservado àquelas tribos que tinham o azar de já residirem na Lebensraum prometida: "Quando o Senhor teu Deus te houver introduzido na terra, à qual vais para a possuir, e tiver lançado fora muitas nações de diante de ti, os eteus, e os girgaseus, e os amorreus, e os cananeus, e os perizeus, e os eveus, e os jebuseus, sete nações mais numerosas e mais poderosas do que ti, e o Senhor teu Deus as tiver dado diante de ti, para as ferir, totalmente as destruirás; não farás com elas aliança, nem terás piedade delas".
 
Será que as pessoas que tomam a Bíblia como inspiração para a retidão moral têm alguma noção do que realmente está escrito nela?
 
As seguintes ofensas merecem a pena de morte, de acordo com o Levítico 20: amaldiçoar os pais; cometer adultério; ter relações sexuais com a madrasta ou com a enteada; a homossexualidade, casar com uma mulher e com a filha dela; o bestialismo (e, como se já não fosse o bastante, o pobre animal deve ser morto também). Também é executado, é claro, quem trabalhar no Shabat: a questão é relembrada a toda hora em todo o Antigo Testamento.
 
Em Números 15, os filhos de Israel encontram um homem apanhando lenha no dia proibido. Eles o prendem e então perguntam a Deus o que fazer com ele. Só que Deus não estava a fim de meias medidas naquele dia. "Tal homem será morto; toda a congregação o apedrejará fora do arraial. Levou-o, pois, toda a congregação para fora do arraial, e o apedrejaram; e ele morreu." Será que o inofensivo apanhador de lenha não tinha uma mulher e filhos para lamentar sua morte? Teria ele chorado de medo quando as primeiras pedras voaram, e gritado de dor enquanto a fuzilaria atingia sua cabeça?
 
O que me choca hoje em dia nessas histórias não é que elas tenham acontecido de verdade. Provavelmente não aconteceram [pois a bíblia não é nada confiável mesmo]. O que me deixa de queixo caído é que as pessoas de hoje em dia queiram basear sua vida num exemplo tão aterrador quanto o do tal Javé — e, pior ainda, que queiram impor esse mesmo monstro do mal (seja ele fato ou ficção) ao resto de nós.
 
O poder político dos guardiães americanos dos Dez Mandamentos é especialmente lamentável naquela grande República, cuja Constituição, afinal de contas, foi elaborada por homens iluministas em termos estritamente laicos. Se levarmos os Dez Mandamentos a sério, teremos que classificar a adoração aos deuses errados, e a fabricação de imagens esculpidas, em primeiro e segundo lugar entre todos os pecados. Em vez de condenar o vandalismo inenarrável do Talibã, que dinamitou os Budas de 45 metros de altura de Bamiyan, nas montanhas do Afeganistão, nós os elogiaríamos por sua devoção. Aquilo que consideramos vandalismo por parte deles certamente foi motivado por um zelo religioso sincero. Esse fato é atestado em cores fortes por uma história bizarra, que foi destaque no The Independent (de Londres) de 6 de agosto de 2005. Sob a manchete "A destruição de Meca", na primeira página, o The Independent afirmou:
 
"A histórica Meca, o berço do islã, está sendo sepultada num massacre sem precedentes perpetrado por fanáticos religiosos. Quase tudo na rica e multifacetada história da cidade sagrada já se perdeu [...] Hoje a cidade natal do profeta Maomé enfrenta as escavadeiras, com a conivência de autoridades religiosas sauditas, cuja interpretação linha-dura do islã as está fazendo destruir seu próprio patrimônio [...] O motivo por trás da destruição é o medo fanático dos wahhabistas de que lugares de interesse histórico e religoso possam dar origem à idolatria ou ao politeísmo, à adoração de múltiplos deuses, potencialmente iguais. A prática da idolatria ainda é, na Arábia Saudita, em princípio, punível pela decapitação.”
 
 
Não acredito que haja um ateu no mundo que demoliria Meca — ou Chartres, a York Minster ou Notre Dame, o Shwedagon, os templos de Kyoto ou, claro, os Budas de Bamiyan. Como disse o físico americano e prémio Nobel Steven Weinberg, "a religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem ela, teríamos gente boa fazendo coisas boas e gente ruim fazendo coisas ruins. Mas, para que gente boa faça coisas ruins, é preciso a religião".
 
Blaise Pascal (o da aposta) disse algo parecido: "Os homens nunca fazem o mal tão plenamente e com tanto entusiasmo como quando o fazem por convicção religiosa".
 
Meu principal objetivo aqui não foi mostrar que não devemos tirar nossos princípios morais das Escrituras (embora essa seja minha opinião). Meu objetivo foi demonstrar que nós (e isso inclui as pessoas religiosas) na verdade não tiramos nossos princípios morais das EscriturasSe tirássemos, observaríamos estritamente o dia de descanso e acharíamos justo e adequado executar quem preferir não observá-lo. Apedrejaríamos até a morte uma noiva que não conseguisse provar sua virgindade, se o marido anunciasse estar insatisfeito com ela. Executaríamos crianças desobedientes.
 
Mas espere aí. Talvez eu esteja sendo injusto. Os bons cristãos terão protestado durante todo este trecho: todo mundo sabe que o Antigo Testamento é bem desagradável. O Novo Testamento de Jesus desfaz o prejuízo e conserta tudo. Não é verdade?
 
O NOVO TESTAMENTO É MELHOR?
 
 
Bom, não há como negar que, do ponto de vista moral, Jesus é um enorme avanço se comparado com o ogro cruel do Antigo Testamento. Se é que existiu, Jesus (ou quem quer que tenha escrito suas pretensas falas) foi certamente um dos grandes inovadores éticos da história. O Sermão da Montanha é bastante progressista. Seu "ofereça a outra face" antecipou Gandhi e Martin Luther King em 2 mil anos. Não foi à toa que escrevi um artigo chamado "Ateus por Jesus" (e depois tive o prazer de ganhar de presente uma camiseta com esses dizeres).
 
Mas a superioridade moral de Jesus reforça minha tese. Jesus não se contentou em retirar sua ética das Escrituras sob as quais foi criado. Ele rompeu explicitamente com elas, por exemplo quando esvaziou as advertências duras contra desobedecer ao Shabat. "O Shabat foi feito para o homem, não o homem para o Shabat" acabou sendo generalizado na forma de um sábio provérbio.
 
Como a principal tese deste capítulo é que nós não tiramos — nem deveríamos tirar — nossos princípios morais das Escrituras, é preciso fazer justiça e considerar Jesus um modelo para essa tese.
 
Os valores familiares de Jesus, é preciso admitir, não são lá muito exemplaresEle era seco, chegando a ser rude, com a própria mãe, e encorajou os discípulos a abandonar a família para segui-lo. "Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo." A comediante americana Julia Sweeney manifestou seu espanto em seu show-solo Letting go of God: "Não é o que os cultos fazem? Fazem você rejeitar sua família para que possam influenciá-lo".
 
Apesar de seus valores familiares meio estranhos, os ensinamentos éticos de Jesus foram — pelo menos em comparação ao desastre ético que é o Antigo Testamento — admiráveis; mas existem outros ensinamentos no Novo Testamento que nenhuma pessoa de bem apoiaria. Refiro-me especialmente à doutrina central do cristianismo: a da "expiação" do "pecado original". Esse ensinamento, que está no cerne da teologia do Novo Testamento, é quase tão repulsivo em termos morais quanto a história de Abraão preparando-se para transformar Isaac em churrasquinho, e parece-se com ela — e não se trata de um acaso, como Geza Vermes deixa claro em As várias faces de Jesus.
 
pecado original em si vem diretamente do mito de Adão e Eva, do Antigo Testamento. O pecado deles — comer do fruto da árvore proibida — parece merecedor de não mais que uma simples bronca. Mas a natureza simbólica do fruto (o conhecimento do bem e do mal, que na prática se revelou o conhecimento de que eles estavam nus) foi o suficiente para transformar a travessura na mãe e no pai de todos os pecados.
 
Eles e todos os seus descendentes foram expulsos para sempre do Jardim do Éden, privados do dom da vida eterna e condenados a gerações de trabalhos dolorosos, no campo e no parto, respectivamente. Tão distante, tão vingativo: bem adequado ao tom do Antigo Testamento.
 
A teologia do Novo Testamento acrescenta mais uma injustiça, completada por um novo sadomasoquismo que nem o Antigo Testamento quase consegue superar. Pensando bem, é incrível que uma religião adote um instrumento de tortura e execução como seu símbolo sagrado, freqüentemente usado em torno do pescoço. Lenny Bruce observou bem que, "se Jesus tivesse sido morto há vinte anos, as crianças católicas estariam usando cadeirinhas elétricas no pescoço, em vez de cruzes".
 
Mas a teologia e a teoria da punição por trás disso são ainda mais graves. Acredita-se que o pecado de Adão e Eva tenha sido transmitido ao longo da linhagem masculina — transmitido pelo sêmen, de acordo com santo Agostinho. Que tipo de filosofia ética é essa que condena todas as crianças, mesmo antes de nascer, a herdar o pecado de um ancestral remoto? Agostinho, por sinal, que com razão se considerava uma espécie de autoridade pessoal em matéria de pecado, foi o responsável por cunhar o termo "pecado original". Antes dele isso era conhecido como "pecado ancestral". Os pronunciamentos e debates de Agostinho exemplificam, para mim, a preocupação pouco saudável dos primeiros teólogos cristãos com o pecadoEles podiam ter dedicado suas páginas e seus sermões a exaltar o céu estrelado, ou as montanhas e florestas, os mares e as cores do amanhecer. Essas coisas são mencionadas às vezes, mas o foco cristão está sempre no pecado pecado pecado pecado pecado pecado pecadoQue preocupaçãozinha chata para dominar sua vida.
 
Sam Harris é de uma virulência magnífica em seu livrinho Carta a uma nação cristã: "Sua principal preocupação [a de muitos religiosos] parece ser a de que o Criador do universo ficará ofendido com o que as pessoas fizerem peladas. Essa sua pudicícia contribui diariamente para o superavit da miséria humana".
 
Agora o sadomasoquismo. Deus encarnou-se como homem, Jesus, para que pudesse ser torturado e executado em expiação do pecado hereditário de Adão. Desde que Paulo expôs essa doutrina repugnante, Jesus vem sendo adorado como o redentor de todos os nossos pecados. Não apenas o pecado passado de Adão: pecados futuros também, decidam ou não as pessoas futuras cometê-los! Em outro adendo, já ocorreu a muita gente, incluindo Robert Graves, em seu romance épico King Jesus, que o pobre Judas Iscariotes ficou com um mau negócio, já que sua "traição" era uma parte necessária do plano cósmico. O mesmo poderia ser dito dos supostos assassinos de Jesus. Se Jesus queria ser traído e depois assassinado, para que pudesse nos redimir, não é injusto por parte daqueles que se consideram redimidos descontar em Judas e nos judeus por toda a eternidade?
 
Já mencionei a longa lista de evangelhos não canónicos. Um manuscrito que supostamente seria o Evangelho de Judas foi traduzido recentemente e recebeu grande publicidade em conseqüência. As circunstâncias de sua descoberta são controversas, mas aparentemente ele apareceu no Egito nos anos 1970 ou 1960. Está em copta, em 62 páginas de papiros, e remonta a por volta de 300 d. C., pela datação por carbono, tendo sido provavelmente baseado em um manuscrito grego mais antigo. Seja quem for o autor, o evangelho é visto da perspectiva de Judas Iscariotes e sustenta que Judas só traiu Jesus porque Jesus pediu que ele fizesse esse papel. Tudo fazia parte do plano para que Jesus fosse crucificado e assim redimisse a humanidade [e depois seus seguidores pudessem fantasiar com "profecias" intencionalmente cumpridas em um messias que, esperto e fanático, decidiu se adequar a elas para ficar famoso ou por algum outro motivo].
 
Descrevi a expiação dos pecados, a doutrina central do cristianismo, como cruel, sadomasoquista e repugnante. Também deveríamos qualificá-la como loucura de pedra, se não fosse pela enorme familiaridade com ela, que anestesia nossa objetividade. Se Deus quisesse perdoar nossos pecados, por que não perdoá-los, simplesmente, sem ter de ser torturado e executado em pagamento — condenando, dessa forma, as gerações futuras e remotas de judeus a pogroms e perseguições por serem os "assassinos de Cristo": e será que esse outro pecado hereditário também foi transmitido pelo sêmen?
 
Paulo, como deixa claro o intelectual judeu Geza Vermes, estava impregnado do velho princípio teológico judaico de que sem sangue não há expiação. Em sua Epístola aos Hebreus (9, 22), aliás, ele diz exatamente isso. Os estudiosos progressistas da ética hoje em dia já acham difícil defender qualquer tipo de teoria retributiva da punição, imagine então a teoria do bode expiatório — executar um inocente para pagar pelos pecados dos culpados. De qualquer maneira (não dá para não questionar), quem é que esse Deus estava tentando impressionar? Presumivelmente ele mesmo — juiz e júri, além de vítima de execução.
 
E, para completar, Adão, o suposto executor do pecado original, nem existiu: um fato estranho — tudo bem que Paulo não soubesse, mas um Deus onisciente supostamente saberia (e Jesus também, se se acreditar que ele era Deus) — o que mina fundamentalmente a premissa de toda essa teoria tortuosa e nojenta.
 
Ah, mas é claro, a história de Adão e Eva era apenas simbólica, não era? Simbólica? Então, para impressionar a si mesmo, Jesus fez-se ser torturado e executado, numa punição indireta por um pecado simbólico cometido por um indivíduo inexistente? Como eu disse, loucura de pedra, além de cruelmente desagradável.
 
Antes de deixar a Bíblia para trás, preciso chamar a atenção para um aspecto especialmente difícil de engolir de seus ensinamentos éticos. Os cristãos raramente percebem que boa parte das considerações morais pelos outros, que parecem ser promovidas tanto pelo Antigo quanto pelo Novo Testamento, tinha a intenção original de se aplicar apenas a um pequeno grupo interno e específico. "Amai o próximo" não significa o que achamos hoje que significa. Significava apenas "Amai outro judeu". Essa tese é defendida de forma arrasadora pelo físico americano e antropólogo evolucionista John Hartung. Ele escreveu um trabalho extraordinário sobre a evolução e a história bíblica da moralidade entre membros de um grupo, ressaltando, também, o outro lado — a hostilidade com os forasteiros...
 
AMA O PRÓXIMO
 
O humor negro de John Hartung fica evidente logo de cara," quando ele conta sobre uma iniciativa batista para contabilizar o número de cidadãos do Alabama no inferno. Como afirmaram o The New York Times e o Newsday, o total final, 1,86 milhão, foi estimado usando uma fórmula secreta segundo a qual os metodistas tinham uma chance maior de ser salvos que os católicos, e "virtualmente todo mundo que não pertencesse a uma congregação foi contabilizado entre os perdidos".
 
A presunção sobrenatural dessa gente reflete-se hoje nos vários sites de "arrebatamento", em que o autor sempre tem certeza absoluta de que estará entre os que "desaparecerão" nos céus quando o "fim dos tempos" chegar. Veja um exemplo típico, do autor de "Rapture Ready", um dos exemplares mais odiosamente santimoniais do género: "Se o arrebatamento ocorrer, resultando na minha ausência, tornar-se-á necessário que santos da tribulação reproduzam ou sustentem financeiramente este site".
 
A interpretação que Hartung faz da Bíblia sugere que ela não fornece base para uma complacência tão convicta como a dos cristãos. Jesus limitou seu grupo de salvos estritamente aos judeus, no que respeitava a tradição do Antigo Testamento, que era tudo que conhecia. Hartung mostra claramente que "Não matarás" jamais quis significar o que achamos hoje que significa. Significava, de uma maneira bem específica, que não matarás judeus. E todos os mandamentos que fazem referência ao "próximo" são igualmente excludentes. "Próximo" significa camarada judeu.
 
Maimônides, rabino e médico altamente respeitado do século XII, descreve o significado pleno de "Não matarás" da seguinte maneira: "Se alguém mata um único israelita, transgride um mandamento negativo, pois a Escritura diz: Não matarás. Se alguém matar propositadamente na presença de testemunhas, ele é morto pela espada. É óbvio que ele não é morto se matar um pagão".
 
É óbvio! Hartung cita o Sinédrio (a Suprema Corte Judaica, presidida pelo sumo sacerdote) no mesmo tom, absolvendo um homem que hipoteticamente matou um israelita por engano, quando pretendia matar um animal ou um pagão.
 
Esse instigante enigma moral suscita uma questão interessante. E se jogarmos uma pedra sobre um grupo de nove pagãos e um israelita, e tivermos a infelicidade de matar o israelita? Hum, difícil! Mas a resposta já está pronta. "Então sua não- responsabilidade pode ser inferida do fato de que a maioria era de pagãos."
 
Hartung usa muitas citações bíblicas do tipo das que usei neste capítulo, sobre a conquista da Terra Prometida por Moisés, Josué e os Juizes. Tive o cuidado de admitir que as pessoas religiosas não pensam mais de modo bíblico. Para mim, isso comprovou que nossos princípios morais, sejamos nós religiosos ou não, vêm de outra fonte; e que essa outra fonte, seja ela qual for, está disponível para todos nós, independentemente da religião ou da ausência dela.
 
Mas Hartung conta um estudo apavorante feito pelo psicólogo israelense George Tamarin. Tamarin apresentou para mais de mil crianças israelenses, entre oito e catorze anos de idade, o relato da batalha de Jericó, do livro de Josué:
 
"Disse Josué ao povo: 'Gritai, porque o SENHOR vos tem dado a cidade. Porém a cidade será anátema ao SENHOR, ela e tudo quanto houver nela [...] Toda a prata, e o ouro, e os vasos de metal, e de ferro são consagrados ao SENHOR; irão ao tesouro do SENHOR' [...] E tudo quanto havia na cidade destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento [...] Tão- somente a prata, e o ouro, e os vasos de metal e de ferro deram para o tesouro da casa do SENHOR." (Josué, cap. VI)
 
Tamarin fez às crianças uma simples pergunta moral: "Vocês acham que Josué e os israelitas agiram bem ou não?". Elas tinham de escolher entre A (aprovação total), B (aprovação parcial) e C (reprovação total). Os resultados foram polarizados: 66% deram aprovação total e 26% reprovação total, com uma proporção bem menor (8%) no meio, com aprovação parcial.
 
Aqui estão as três respostas típicas do grupo da aprovação total (A):
- Na minha opinião, Josué e os Filhos de Israel agiram bem, e aqui estão as razões: Deus prometera esta terra a eles, e deu-lhes permissão para conquistá-la. Se eles não tivessem agido dessa maneira ou não tivessem matado ninguém, haveria o perigo de que os Filhos de Israel fossem assimilados pelos góis.
- Na minha opinião Josué estava certo ao fazer aquilo, sendo que um dos motivos é que Deus mandou que ele exterminasse o povo para que as tribos de Israel não fossem assimiladas entre eles e aprendessem seus maus hábitos.
- Josué agiu bem porque o povo que morava na terra era de uma religião diferente, e quando Josué os matou ele varreu a religião deles da. face da Terra.
 
A justificativa para o massacre genocida de Josué é sempre religiosa. Até os da categoria C, que deram sua total reprovação, fizeram isso, em alguns casos, por motivos religiosos duvidosos. Uma menina, por exemplo, reprovou a conquista de Jericó por Josué porque, para fazê-lo, ele teve de entrar nela:
- Acho que foi ruim, já que os árabes são impuros e se alguém entra numa terra impura também fica impuro e amaldiçoado como eles.
Dois outros estudantes que reprovaram totalmente a atitude de Josué o fizeram porque Josué destruiu tudo, incluindo animais e bens, em vez de manter alguma coisa como prémio para os israelitas:
- Acho que Josué não agiu bem, porque eles podiam ter poupado os animais para eles mesmos.
- Acho que Josué não agiu bem, porque ele podia ter deixado os bens de Jericó; se ele não tivesse destruído os bens, eles teriam ficado com os israelitas.
 
Mais uma vez o sábio Maimônides, freqüentemente citado por seu conhecimento acadêmico, não tem dúvidas de sua posição a respeito da questão: "É um mandamento positivo destruir as sete nações, já que está dito: Totalmente as destruirás. Se não se mata quem cai em seu poder, transgride-se um mandamento negativo, já que está dito: Nenhuma coisa que tem fôlego deixarás com vida".
 
Diferentemente de Maimônides, as crianças do experimento de Tamarin eram jovens o suficiente para ser inocentes. Presume-se que as opiniões selvagens que elas manifestaram sejam as de seus pais, ou do grupo em que foram criadas. Não é improvável, acredito, que crianças palestinas, criadas no mesmo país dilacerado pela guerra, dessem opiniões equivalentes, na direção contrária.
 
Essas considerações enchem-me de desespero. Elas parecem mostrar o imenso poder da religião, e especialmente da educação religiosa das crianças, para dividir as pessoas e alimentar inimizades históricas e vendetas hereditárias. Não me contenho em ressaltar que duas das três citações representativas do grupo A do experimento de Tamarin mencionavam os perigos da assimilação, enquanto a terceira reforçava a importância de matar as pessoas para eliminar sua religião.
 
Tamarin fez um grupo de controle fascinante em sua experiência. Um grupo diferente de 168 crianças israelenses recebeu o mesmo texto do livro de Josué, mas com o nome de Josué trocado por "general Lin" e "Israel" trocado por "um reino chinês há 3 mil anos". Dessa vez o experimento teve resultados opostos. Apenas 7% aprovaram o comportamento do general Lin, e 75% o reprovaram. Em outras palavras, quando sua lealdade ao judaísmo foi removida da equação, a maioria das crianças concordou com os juízos morais que a maioria dos seres humanos modernos teria.
 
A atitude de Josué foi um feito de genocídio selvagem. Mas tudo fica diferente do ponto de vista religioso. E a diferença começa muito cedo na vida. Foi a religião que fez a diferença entre as crianças condenarem ou endossarem o genocídio.
 
Na segunda metade de seu trabalho, Hartung passa para o Novo Testamento. Para dar um breve resumo da tese dele, Jesus foi um devoto da mesma moralidade entre membros do mesmo grupo — associada à hostilidade a forasteiros — que era tida como certa no Antigo TestamentoJesus era um judeu leal. Foi Paulo quem inventou a idéia de levar o Deus judeu aos gentios. Hartung usa um tom mais duro do que eu me atreveria: "Jesus teria se revirado no túmulo se soubesse que Paulo estava levando seu plano para os porcos".
 
Hartung divertiu-se bastante com o livro do Apocalipse, que certamente é um dos livros mais estranhos da Bíblia. Foi supostamente escrito por são João, e, como disse bem o Ken’s guide to the Biblese as epístolas podem ser vistas como João maconhado, o Apocalipse é João sob LSD.100
 
Hartung chama a atenção para os dois versos do Apocalipse em que o número dos "selados" (que algumas seitas, como as Testemunhas de Jeová, interpretam como "salvos") limita-se a 144 mil. A tese de Hartung é que todos teriam de ser judeus: 12 mil de cada uma das doze tribos. Ken Smith vai além, destacando que os 144 mil eleitos "não estão contaminados com mulheres", o que presumivelmente significa que nenhum deles podia ser mulher. Bem, esse é o tipo de coisa que já era de esperar. Há muito mais no agradável trabalho de Hartung. Simplesmente o recomendarei mais uma vez, e o resumirei numa citação:
 
"A Bíblia é um guia da moralidade entre membros do mesmo grupo, contendo instruções para o genocídio, para a escravização de forasteiros e para a dominação do mundo. Mas a Bíblia não é malévola devido a seus objetivos ou à glorificação do assassinato, da crueldade e do estupro. Muitas obras antigas fazem a mesma coisa — a Ilíada, as sagas islandesas, as lendas dos sírios da Antiguidade ou as inscrições dos maias, por exemplo. Mas ninguém sai por aí vendendo a Ilíada como base da moralidade. Aí é que está o problema. A Bíblia é vendida, e comprada, como um guia para orientar a vida das pessoas. E é, de longe, o maior best-seller de todos os tempos [infelizmente]."
 
Antes que se pense que o exclusivismo do judaísmo tradicional seja singular entre as religiões, veja o seguinte verso confiante de um hino de Isaac Watts (1674- 1748):
Senhor, atribuo à Tua Graça,
E não ao acaso, como outros,
Que eu tenha nascido de Raça Cristã
E não Pagão ou Judeu.
 
O que me intriga nesses versos não é o exclusivismo per se, mas a lógica. Como muitos outros nasceram em religiões que não o cristianismo, como Deus decidiu que pessoas futuras deveriam receber um nascimento tão favorecido? Por que beneficiar Isaac Watts e as pessoas que ele visualizou que cantariam seu hino? E, além disso, antes de Watts ter sido concebido, qual era a natureza da entidade que estava sendo favorecida? São águas profundas, mas talvez não profundas demais para uma mente afinada com a teologia.
 
O hino de Isaac Watts remete a três orações diárias que são ensinadas aos homens judeus ortodoxos e conservadores (mas não os reformados): "Abençoado sejas por não ter feito de mim um gentio. Abençoado sejas por não ter feito de mim uma mulher. Abençoado sejas por não ter feito de mim um escravo".
 
A religião é sem dúvida uma força que provoca divisões, e essa é uma das principais acusações levantadas contra ela. Mas diz-se com frequência e com razão que as guerras, e as brigas entre grupos ou seitas religiosas, raramente dizem respeito a discordâncias teológicas. Quando um paramilitar protestante do Ulster mata um católico, ele não está pensando: "Tome isto, seu idiota transubstancionistamariólatraincensado!". É muito mais provável que ele esteja vingando a morte de outro protestante morto por outro católico, talvez dentro de uma vendeta transgeracional. A religião é um rótulo para a inimizade entre integrantes do grupo/forasteiros e para a vendeta, não necessariamente pior que outros rótulos como a cor da pele, a língua ou o time de futebol preferido, mas freqüentemente disponível quando outros rótulos não estão disponíveis.
 
Sim, sim, é claro que os problemas da Irlanda do Norte são políticos. Realmente houve opressão económica e política de um grupo sobre o outro, e isso remonta a séculos atrás. Realmente existem ressentimentos e injustiças genuínos, e eles parecem ter pouco a ver com religião; tirando o fato de que — e isso é importante e muitas vezes deixado de lado — sem a religião não haveria alguns rótulos herdados ao longo de muitas gerações.
 
Católicos cujos pais, avós e bisavós estudaram em escolas católicas mandam os filhos para escolas católicas. Protestantes cujos pais, avós e bisavós estudaram em escolas protestantes mandam os filhos para escolas protestantes. Os dois grupos têm a mesma cor de pele, falam a mesma língua, gostam das mesmas coisas, mas é como se pertencessem a espécies diferentes, de tão profunda que é a divisão histórica. E, sem a religião, e a educação de segregação religiosa, a divisão simplesmente não existiria. Os dois teriam se unido por meio de casamentos e há muito tempo se dissolvido um no outro.
 
Do Kosovo à Palestina, do Iraque ao Sudão, do Ulster ao subcontinente indiano, observe meticulosamente qualquer região do mundo onde encontrar inimizade e violência intratáveis entre grupos rivais. Não posso garantir que você encontrará religiões como rótulos dominantes para os membros dos grupos e para os forasteiros. Mas é uma boa aposta.
 
Na Índia, na época da partição, mais de 1 milhão de pessoas foram vítimas de massacre nos confrontos religiosos entre hindus e muçulmanos (e 15 milhões foram desalojados de suas casas)Não havia outros rótulos que não os religiosos para definir quem deveria ser morto. No final, não havia nada que os dividisse, com exceção da religião.
 
Salman Rushdie, por causa de uma onda mais recente de massacres religiosos na índia, escreveu um artigo chamado "A religião, como sempre, é o veneno no sangue da índia". Esses são os parágrafos que concluem o texto:
 
"O que há para ser respeitado em tudo isso, ou nos crimes que estão sendo cometidos quase diariamente em nome da malfadada religião? Como a religião ergue bem seus totens, com resultados tão fatais, e como estamos dispostos a matar por eles! E, quando já fizemos isso várias vezes, o amortecimento de seu efeito torna mais fácil fazê-lo de novo. Assim, o problema da Índia revela-se o problema do mundo. O que aconteceu na Índia aconteceu em nome de Deus."
 
Não nego que as poderosas tendências da humanidade para a lealdade dentro do grupo e a hostilidade a forasteiros existiriam mesmo na ausência da religião. Torcedores de times de futebol rivais são um exemplo do fenômeno em menor escala. Até mesmo os torcedores às vezes se dividem pela religião, como é o caso do Glasgow Rangers e do Glasgow Celtic. Línguas (como na Bélgica), raças e tribos (especialmente na África) podem ser símbolos importantes de divisão. Mas a religião amplifica e exacerba os danos, no mínimo de três maneiras:
 
• Rotulação das crianças. As crianças são descritas como "crianças católicas" ou "crianças protestantes" etc., desde que são bem pequenas, e certamente muito antes de ter chegado a suas próprias conclusões sobre o que acham da religião (retomo esse abuso contra a infância no capítulo 9).
 
• Escolas segregadas. As crianças são educadas, novamente desde bem cedo, junto com membros de um grupo religioso e distantes de crianças cujas famílias adotam outras religiões. Não é exagero dizer que os problemas da Irlanda do Norte desapareceriam no período de uma geração se a educação segregadora fosse abolida.
 
• Tabus contra "casamentos externos". Isso perpetua brigas e vendetas hereditárias, evitando a mistura de grupos adversários. O casamento misto, se permitido, tenderia naturalmente a amenizar as inimizades.
 
O vilarejo de Glenarm, na Irlanda do Norte, é o berço dos condes de Antrim. Uma vez, há não muito tempo, o então conde fez o inimaginável: casou-se com uma católica. Imediatamente, nas casas em toda a Glenarm, as janelas fecharam-se em sinal de luto.
 
O horror aos casamentos externos também é disseminado entre os judeus religiosos. Várias das crianças israelenses citadas anteriormente mencionaram o perigo da "assimilação" como base de sua defesa da ação de Josué na batalha de Jericó. Quando pessoas de religiões diferentes se casam entre si, o fato é descrito com tristeza pelos dois lados como um "casamento misto" e com freqüência há longas batalhas para decidir como as crianças serão educadas.
 
Quando eu era criança e ainda tinha lá minha afeição pela Igreja Anglicana, lembro-me de ter ficado confuso ao ouvir falar de uma regra segundo a qual, quando um católico se casava com uma anglicana, os filhos eram sempre criados como católicos. Eu entendia por que um padre de cada denominação tentaria insistir nessa condição. O que eu não conseguia entender (e ainda não consigo) era a assimetria. Por que os padres anglicanos não retaliavam com a regra equivalente, invertida? Talvez fossem menos brutais. Meu velho capelão e o "Nosso Padre" de Betjeman eram bonzinhos demais.
 
Os sociólogos já fizeram pesquisas estatísticas sobre a homogamia religiosa (casar-se com alguém da mesma religião) e a heterogamia (casar-se com alguém de outra religião). Norval D. Glenn, da Universidade do Texas em Austin, reuniu vários estudos desse tipo feitos até 1978 e os analisou em conjunto. Ele concluiu que existe uma tendência significativa para a homogamia religiosa nos cristãos (protestantes se casam com protestantes, católicos se casam com católicos, e isso supera o "efeito do vizinho"), mas que ela é especialmente marcante entre os judeus. De uma amostra total de 6021 pessoas casadas que responderam ao questionário, 140 autodenominaram-se judias, e, destas, 85,7% haviam se casado com judeus. Essa proporção é imensamente maior que a porcentagem que seria aleatoriamente de esperar de casamentos homógamos. E é claro que não se trata de uma novidade para ninguém. Judeus devotos são fortemente desencorajados a se casar com alguém de fora do grupo, e o tabu mostra-se nas piadas sobre mães judias alertando seus meninos para ter cuidado com shiksas loiras de butuca para agarrá-los.
 
Veja declarações típicas de três rabinos americanos:
• "Recuso-me a celebrar casamentos inter-religiosos."
• "Celebro-os se os casais declaram sua intenção de criar os filhos como judeus."
• "Celebro-os se os casais concordarem em participar de um aconselhamento pré-nupcial."
 
São raros os rabinos que concordam em celebrar o casamento junto com um sacerdote cristão, embora haja grande procura.
 
Mesmo que a religião em si não fizesse nenhum outro mal, sua característica divisora, perversa e cuidadosamente cultivada — sua apropriação deliberada da tendência natural da humanidade de favorecer os integrantes de seu próprio grupo e rejeitar os forasteiros — já seria suficiente para fazer dela uma força maligna significativa para o mundo.
 
 
O ZEITGEIST MORAL
 
 
Este capítulo começou mostrando que nós — mesmo os religiosos — não baseamos nossa moralidade em livros sagrados, não importa no que acreditemos. Como, então, decidimos o que é certo e o que é errado? Independentemente de como respondamos a essa pergunta, existe um consenso sobre o que consideramos ser certo e errado: um consenso que prevalece de uma forma surpreendentemente disseminada. O consenso não tem nenhuma conexão evidente com a religião. Ele se estende, no entanto, a pessoas religiosas, pensem elas ou não que seus princípios morais vêm das Escrituras.
 
Com as notáveis exceções do Talibã afegão e do cristianismo americano equivalente, a maioria das pessoas repete o mesmo consenso liberal e amplo de princípios éticos. A maioria de nós não provoca sofrimento desnecessário; acreditamos na liberdade de expressão e a protegemos mesmo quando discordamos do que está sendo dito; pagamos nossos impostos; não traímos, não matamos, não cometemos incesto, não fazemos aos outros o que não queremos que façam conosco. Alguns desses bons princípios podem ser encontrados em livros sagrados, mas enterrados junto com um monte de coisa que nenhuma pessoa decente gostaria de seguir: e os livros sagrados não fornecem regras para distinguir os bons princípios dos ruins.
 
Uma forma de expressar nossa ética consensual é na forma de "Novos Dez Mandamentos". Várias pessoas e instituições já tentaram fazer isso. O significativo é que eles tendem a produzir resultados bastante semelhantes entre si, e o que eles produzem é típico dos tempos em que vivem. Veja um conjunto de "Novos Dez Mandamentos" de hoje em dia, que encontrei por acaso numa página pró-ateísmo na internet:
 
• Não faça aos outros o que não quer que façam com você.
• Em todas as coisas, faça de tudo para não provocar o mal.
• Trate os outros seres humanos, as outras criaturas e o mundo em geral com amor, honestidade, fidelidade e respeito.
• Não ignore o mal nem evite administrar a justiça, mas sempre esteja disposto a perdoar erros que tenham sido reconhecidos por livre e espontânea vontade e lamentados com honestidade.
• Viva a vida com um sentimento de alegria e deslumbramento.
• Sempre tente aprender algo de novo.
• Ponha todas as coisas à prova; sempre compare suas idéias com os fatos, e esteja disposto a descartar mesmo a crença mais cara se ela não se adequar a eles.
• Jamais se autocensure ou fuja da dissidência; sempre respeite o direito dos outros de discordar de você.
• Crie opiniões independentes com base em seu próprio raciocínio e em sua experiência; não se permita ser dirigido pelos outros.
• Questione tudo.
 
Essa pequena coleção não é obra de um grande sábio, ou profeta, ou de um profissional da ética. É só a tentativa simpática de um blogger de resumir os princípios de uma vida de bem hoje em dia, em comparação com os Dez Mandamentos bíblicos [e com um resultado bem melhor que o destes]. Foi a primeira lista que encontrei quando escrevi "Novos Dez Mandamentos" num programa de busca, e deliberadamente não procurei mais que isso. O que interessa é que esse é o tipo de lista que qualquer pessoa decente comum elaboraria.
 
Nem todo mundo faria exatamente a mesma lista. O filósofo John Rawls pode incluir alguma coisa do tipo: "Sempre crie suas normas como se não soubesse se está no topo ou no ponto mais baixo da hierarquia". Um suposto sistema inuíte para dividir a comida é um exemplo prático do princípio de Rawls: quem corta a comida é o último a escolher o pedaço. Nos meus Dez Mandamentos emendados, escolheria alguns dos listados acima, mas também tentaria achar espaço para, entre outros:
 
• Aproveite sua própria vida sexual (desde que ela não prejudique outras pessoas) e deixe que os outros aproveitem a deles em particular, sejam quais forem as inclinações deles, que não lhe interessam.
• Não discrimine nem oprima com base no sexo, na raça ou (sempre que possível) na espécie.
• Não doutrine seus filhos. Ensine-os a pensar por si mesmos, a avaliar as provas e a discordar de você.
• Leve em consideração um futuro numa escala de tempo maior que a sua.
 
Mas deixemos para lá essas pequenas divergências de prioridade. O importante é que todos nós evoluímos, e bastante, desde os tempos bíblicos. A escravidão, que era aceita como uma coisa natural na Bíblia e ao longo da maior parte de nossa história, foi abolida nos países civilizados no século XIX. Todas as nações civilizadas hoje aceitam o que até os anos 1920 era amplamente negado, o fato de que o voto da mulher, numa eleição ou num júri, é igual ao do homem. Nas sociedades esclarecidas de hoje (uma categoria que claramente não inclui, por exemplo, a Arábia Saudita), as mulheres já não são consideradas uma propriedade, como sem dúvida eram nos tempos bíblicosQualquer sistema legal moderno teria processado Abraão por maus-tratos contra criançaE, se ele realmente tivesse executado seu plano de sacrificar Isaac, nós o teríamos condenado por homicídio qualificado.
 
Religiosos ou não, todos nós mudamos de forma maciça em nossa atitude quanto ao que é certo e ao que é errado. (...) A emancipação dos escravos e das mulheres deve muito a líderes carismáticos. Alguns desses líderes eram religiosos; outros não. Alguns dos que eram religiosos fizeram suas boas ações porque eram religiosos. Em outros casos, sua religião foi um acaso. Embora Martin Luther King fosse cristão, ele tirou sua filosofia da desobediência civil pacífica de Gandhi, que não era. E há, também, os avanços na educação e, em particular, a compreensão cada vez maior de que todos nós possuímos a humanidade em comum com membros de outras raças e do sexo oposto — ambas as idéias profundamente não bíblicas e que vêm da ciência da biologia, especialmente da evolução... 

 

Bônus:

 

 

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5 minutos atrás, Faabs disse:

 

 

Moralidade não vem da religião.

 

Obs: Não consegui formatar o texto,aqui onde eu trabalho não tem Word,então fique a vontade para ler direto da fonte

(página 234)

https://drive.google.com/file/d/0B13y6AopiKbbbkpWNzAzRWZWY0k/view?pref=2&pli=1 

 

  Mostrar conteúdo oculto

UM ESTUDO DE CASO DAS RAÍZES DA MORALIDADE

 

Se nosso senso moral, assim como nosso desejo sexual, estiver mesmo profundamente enraizado em nosso passado darwiniano, que precede a religião, a expectativa seria de que pesquisas na mente humana revelassem algumas universais da moral, cruzando fronteiras geográficas e culturais, e também, o mais crucial, barreiras religiosas. O biólogo de Harvard Marc Hauser, em seu livro Moral minas: How nature designed our universal sense ofright and wrong [Mentes morais: como a natureza desenhou nosso senso de certo e errado], ampliou uma linha fértil de experiências de pensamento que havia sido originalmente sugerida por filósofos morais. O estudo de Hauser servirá ainda para apresentar o modo como pensam os filósofos morais. Um dilema moral hipotético é formulado, e a dificuldade que sentimos para responder a ele é reveladora em relação a nosso senso de certo e errado. Hauser vai além dos filósofos porque realiza pesquisas estatísticas e experiências psicológicas, usando questionários na internet, por exemplo, para investigar o senso moral depessoas de verdade. Do ponto de vista atual, o interessante é que a maioria

das pessoas chega às mesmas decisões quando fica diante desses dilemas, e

sua concordância em relação às próprias decisões é mais forte que sua

capacidade de articular suas motivações. É o que esperaríamos se tivéssemos

um senso moral que esteja impresso em nosso cérebro, como nosso instinto

sexual ou nosso medo de altura, ou, como Hauser prefere dizer, como nossa

capacidade para a linguagem (os detalhes variam de cultura para cultura, mas a

estrutura subjacente da gramática é universal). Como veremos, o modo como

as pessoas respondem a esses testes morais, e sua incapacidade de articular

suas motivações, parece ser em grande parte independente de suas crenças

religiosas ou da ausência delas. A mensagem do livro de Hauser, para antecipá-

la nas próprias palavras dele, é essa: "Orientando nossos juízos morais há uma

gramática moral universal, uma faculdade da mente que evoluiu ao longo de

milhões de anos, até incluir um conjunto de princípios para formar uma série

de sistemas morais possíveis. Assim como com a linguagem, os princípios que

compõem nossa gramática moral voam abaixo do radar de nossa consciência".

São típicas dos dilemas morais de Hauser as variações sobre o tema do

vagão ou bonde descontrolado que ameaça matar um grupo de pessoas. A

história mais simples propõe que uma pessoa, Denise, está num centro de

controle em condições de mandar o bonde para um desvio, salvando portanto

a vida das cinco pessoas presas na linha principal. Infelizmente há um homem

preso no desvio. Mas, como ele é apenas um, menos que as cinco pessoas

presas na linha principal, a maioria das pessoas concorda que é moralmente

permissível, se não obrigatório, que Denise mexa no controle e salve os cinco,

matando o homem do desvio. Ignoramos possibilidades hipotéticas como a de

que o homem no desvio possa ser Beethoven, ou um amigo íntimo.

As elaborações sobre a experiência de pensamento apresentam uma série

de enigmas morais cada vez mais provocadores. E se o vagão puder ser contido

pelo lançamento de um peso em seu caminho, de cima de urna ponte? É fácil:

obviamente temos que jogar o peso. Mas e se o único peso disponível for um

homem muito gordo que esteja na ponte admirando o pôr-do-sol? Quase todo

mundo concorda que é imoral empurrar o gordo ponte abaixo, mesmo que,

de determinado ponto de vista, o dilema possa parecer paralelo ao de Denise,

em que a ação de mexer no controle mata um para salvar cinco. A maioria de nós

tem a forte intuição de que há uma diferença crucial entre os dois casos, em-
bora talvez não consigamos articular qual ela é.

Empurrar o gordo ponte abaixo remete a outro dilema analisado por

Hauser. Cinco pacientes de um hospital estão morrendo, cada um da falência de

um órgão diferente. Cada um seria salvo se um doador daquele órgão

específico pudesse ser encontrado, mas não há nenhum disponível. O cirurgião

percebe então que há um homem saudável na sala de espera, com todos os

cinco órgãos em boas condições e adequados para o transplante. Nesse caso,

é quase impossível encontrar alguém que esteja disposto a dizer que o ato

moral é matar um para salvar os cinco.

Assim como com o gordo da ponte, a intuição que a maioria de nós tem

é que um observador inocente não deve ser subitamente sugado por uma

situação desafortunada e usado pelo bem de outras pessoas sem o seu

consentimento. Immanuel Kant articulou o famoso princípio de que um ser

racional jamais deve ser usado como um mero meio para um fim, sem seu

consentimento, mesmo que esse fim seja beneficiar outras pessoas. Parece vir

daí a diferença crucial entre o caso do gordo da ponte (ou o homem da sala de

espera do hospital) e o homem no desvio de Denise. O gordo da ponte está

sendo positivamente usado como forma de conter o avanço do vagão. Isso

viola claramente o princípio kantiano. A pessoa no desvio não está sendo

usada, apenas tem .o azar de estar nele. Mas, quando a distinção é colocada

dessa forma, por que ela nos satisfaz? Para Kant, era um absoluto moral. Para

Hauser isso faz parte de nós, colocado em nós pela evolução.

As situações hipotéticas envolvendo o vagão desgovernado vão se

tornando cada vez mais engenhosas, e os dilemas morais equivalentemente

mais tortuosos. Hauser contrasta os dilemas enfrentados por indivíduos

hipotéticos chamados Ned e Oscar. Ned está ao lado da linha do trem.

Diferentemente de Denise, que podia mandar o vagão para um desvio, o

controle de Ned o manda para um desvio circular que volta para a linha

principal pouco antes das cinco pessoas. Mudar simplesmente a direção não

adianta: o vagão vai bater nos cinco de qualquer jeito quando o desvio voltar

para a linha principal. No entanto, enquanto a coisa acontece, há um homem

extremamente gordo no desvio circular, que é pesado o suficiente para parar

o bonde. Deveria Ned mexer no controle e desviar o trem? A intuição da

maioria das pessoas diz que não. Mas qual é a diferença entre o dilema de Ned e

o de Denise? Presume-se que as pessoas estejam intuitivamente aplicando o

princípio de Kant. Denise desvia o vagão de atropelar as cinco pessoas, e a vítima

infeliz do desvio é um "dano colateral", para usar o adorável termo

rumsfeldiano. Ele não está sendo usado por Denise para salvar os outros. Ned

está usando o homem gordo para deter o vagão, e a maioria das pessoas

(talvez sem pensar), junto com Kant (que pensou com todos os detalhes),

encara isso como uma diferença crucial.

A diferença é evidenciada novamente pelo dilema de Oscar. A situação de

Oscar é idêntica à de Ned, com a exceção de que há um grande peso de ferro no

desvio circular da pista, pesado o suficiente para deter o vagão. É claro que

Oscar não deve ter problemas para decidir mexer no controle e desviar o

bonde. Exceto pelo fato de que há uma pessoa caminhando na frente do peso

de ferro. Ela certamente morrerá se Oscar acionar o desvio, assim como o

homem gordo de Ned morreria. A diferença é que o andarilho de Oscar não está

sendo usado para conter o vagão: ele é um dano colateral, assim como no

dilema de Denise. Da mesma forma que Hauser, e da mesma forma que a

maioria dos sujeitos das experiências de Hauser, acho que Oscar pode acionar o

controle, mas Ned não. Mas também acho bastante difícil justificar minha

intuição. A tese de Hauser é que esse tipo de intuição moral freqüentemente

não é pensado, mas que o sentimos com contundência do mesmo jeito, por

causa de nossa herança evolutiva.

Numa incursão intrigante na antropologia, Hauser e seus colegas

adaptaram seus experimentos morais aos kuna, uma pequena tribo da

América Central que mantém pouco contato com os ocidentais e não possui

religião formal. Os pesquisadores mudaram a experiência de pensamento do

"vagão na linha de trem" para equivalentes mais adequados, como crocodilos

nadando na direção de canoas. Com as pequenas diferenças correspondentes,

os kuna mostram os mesmos juízos morais que a maioria de nós.

Hauser também especulou, de especial interesse para este livro, se as

pessoas religiosas têm intuições morais diferentes das dos ateus. Se tiramos

nossa moralidade da religião, certamente deveria haver diferença. Mas parece

que não há. Hauser, trabalhando com o filósofo moral Peter Singer,87 concentrou-
se em três dilemas hipotéticos e comparou os veredictos de ateus com os de

pessoas religiosas. Em cada um dos casos, pediu-se aos entrevistados que

escolhessem qual atitude hipotética seria moralmente "obrigatória",

"permissível" ou "proibida". Os três dilemas eram:

1 O dilema de Denise. Noventa por cento das pessoas disseram que era

permissível desviar o vagão, matando um para salvar cinco.

2 Você vê uma criança se afogando num lago e não há nenhuma outra

ajuda à vista. Você pode salvar a criança, mas suas calças ficarão

arruinadas no processo. Noventa e sete por cento concordaram que

você deve salvar a criança (o incrível é que 3% aparentemente

prefeririam salvar as calças).

3 O dilema do transplante de órgãos descrito anteriormente. Noventa e

sete por cento dos entrevistados concordaram que é moralmente

proibido capturar a pessoa saudável da sala de espera e matá-la para

usar seus órgãos, salvando assim cinco pessoas.

A principal conclusão do estudo de Hauser e Singer foi que não há

diferença estatisticamente significativa entre ateus e crentes religiosos na

elaboração desses juízos. Esse fato parece compatível com a opinião, minha e

de muitas outras pessoas, de que não precisamos de Deus para sermos bons

— ou maus.

SE DEUS NÃO EXISTE, POR QUE SER BOM?

Apresentada assim, a pergunta soa realmente ignóbil. Quando uma

pessoa religiosa dirige-a desse jeito para mim (e muitas fazem isso), minha

tentação imediata é lançar o seguinte desafio: "Você realmente quer me dizer

que o único motivo para você tentar ser bom é para obter a aprovação e a

recompensa de Deus, ou para evitar a desaprovação dele e a punição? Isso não é

moralidade, é só bajulação, puxação de saco, estar peocupado com a grande

câmera de vigilância dos céus, ou com o pequeno grampo de dentro da sua

cabeça que monitora cada movimento seu, até seus pensamentos mais

ordinários". Como disse Einstein, "se as pessoas são boas só porque temem a

punição, e esperam a recompensa, então nós somos mesmo uns pobres

coitados". Michael Shermer, em The science of good and evil, acha que a per-
gunta encerra o debate. Se você acha que, na ausência de Deus, "cometeria

roubos, estupros e assassinatos", revela-se uma pessoa imoral, "e faríamos bem

em nos manter bem longe de você". Se, por outro lado, você admite que

continuaria sendo uma boa pessoa mesmo quando não estiver sob a vigilância

divina, você destruiu fatalmente a alegação de que Deus é necessário para

que sejamos bons. Suspeito que boa parte das pessoas religiosas realmente ache

que a religião é o que as motiva a serem boas, especialmente se elas

pertencem a uma daquelas crenças que exploram sistematicamente a culpa

pessoal.

A mim me parece que é preciso uma dose muito baixa de auto-estima

para achar que, se a crença em Deus desaparecesse repentinamente do

mundo, todos nós nos tornaríamos hedonistas insensíveis e egoístas, sem

nenhuma bondade, caridade, generosidade, nada que mereça o nome de

bondade. Acredita-se que Dostoiévski fosse dessa opinião, supostamente

devido a algumas declarações que ele colocou na boca de Ivan Karamázov:

[Ivan] observou com solenidade que não existia absolutamente nenhuma lei da natureza

que fizesse o homem amar a humanidade, e que, se o amor realmente existia e havia

existido no mundo até então, não era por causa da lei natural, mas só porque o homem

acreditava em sua própria imortalidade. Ele acrescentou, num adendo, que era

exatamente aquilo que constituía a lei natural, ou seja, que uma vez que a fé do homem

em sua própria imortalidade fosse destruída, não seria só sua capacidade para o amor que

se esgotaria, mas também as forças vitais que sustentam a vida neste planeta. Além do

mais, nada seria imoral, tudo seria permitido, até a antropofagia. E, por fim, como se tudo

isso não bastasse, ele declarou que para cada pessoa, como eu e você, por exemplo, que

não acredita nem em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei natural está destinada a

transformar-se imediatamente no exato contrário da lei baseada na religião que a

precedia, e que o egoísmo, mesmo levando à perpetração de crimes, não seria somente

per-missível, mas seria reconhecido como a raison d'être essencial, mais racional e mais

nobre da condição humana.88

Talvez por ingenuidade tendi para uma visão menos cínica da natureza

humana que a de Ivan Karamázov. Será que realmente precisamos de

policiamento — seja feito por Deus ou por nós mesmos — para que não nos

comportemos de modo egoísta e criminoso? Quero muito acreditar que não

preciso dessa vigilância — nem você, caro leitor. Por outro lado, só para enfra-
quecer nossa convicção, leia a experiência sobre a desilusão de Steven Pinker

numa greve policial em Montreal, descrita por ele em Tabula rasa:

Quando eu era adolescente, no orgulhosamente pacífico Canadá, durante os românticos

anos 1960, era um defensor fiel da anarquia de Bakunin. Ria do argumento de meus pais

de que se o governo entregasse as armas o caos tomaria conta de tudo. Nossas previsões

concorrentes foram postas à prova às oito horas da manhã do dia 17 de outubro de 1969,

quando a polícia de Montreal entrou em greve. Às onze e vinte, o primeiro banco tinha

sido roubado. Ao meio-dia a maioria das lojas do centro da cidade havia fechado as portas

por causa dos saques. Algumas horas depois, taxistas incendiaram a garagem de um

serviço de aluguel de limusines que concorria com eles por passageiros do aeroporto, um

atirador assassinou um policial da província, baderneiros invadiram hotéis e restaurantes e

um médico matou um ladrão em sua casa, no subúrbio. No fim do dia, seis bancos haviam

sido assaltados, cem lojas haviam sido, saqueadas, doze incêndios haviam sido

provocados, quilos e quilos de vidros de vitrines haviam sido quebrados e 3 milhões de

dólares em prejuízos haviam sido registrados, até que as autoridades da cidade tiveram

que chamar o Exército e, é claro, a polícia montada para restabelecer a ordem. Esse teste

empírico decisivo deixou minha política em frangalhos [...]

Talvez eu também seja uma Poliana por acreditar que as pessoas

permaneceriam boas se não fossem observadas nem policiadas por Deus. Por

outro lado, a maioria da população de Montreal supostamente acreditava em

Deus. Por que o medo de Deus não as conteve quando os policiais terrenos

foram temporariamente tirados de cena? A greve de Montreal não foi uma

ótima experiência natural para testar a hipótese de que a crença em Deus nos

torna bons? Ou talvez o sarcástico H. L. Mencken tivesse razão quando disse:

"As pessoas dizem que precisamos de religião, mas o que elas realmente querem

dizer é que precisamos de polícia".

É óbvio que não foi todo mundo em Montreal que se comportou mal

quando a polícia saiu de cena. Seria interessante saber se houve alguma

tendência estatística, por mais leve que fosse, para que os crentes na religião

tenham saqueado e depredado menos que os descrentes. Minha previsão

desinformada seria a do contrário. Muitas vezes se diz, cinicamente, que não há

ateus nas trincheiras. Estou inclinado a desconfiar (com base em alguma

evidência, embora possa ser simplista tirar conclusões delas) que haja bem

poucos ateus nas prisões. Não estou necessariamente afirmando que o

ateísmo aumenta a moralidade, embora o humanismo — o sistema ético que

freqüentemente acompanha o ateísmo — provavelmente o faça. Outra boa

possibilidade é que o ateísmo esteja correlacionado com algum terceiro fator,

como um nível maior de instrução, inteligência ou ponderação, que pode

contrabalançar impulsos criminosos. As evidências existentes retiradas de

pesquisas certamente não sustentam a idéia comum de que a religiosidade

está diretamente relacionada à moralidade. Evidências correlacionais nunca são

conclusivas, mas os dados seguintes, descritos por Sam Harris em seu Carta a uma

nação cristã, são de qualquer forma impressionantes.

Embora a filiação partidária nos Estados Unidos não seja um indicador perfeito da

religiosidade, não é segredo que os "estados vermelhos [republicanos]" são vermelhos

principalmente devido à enorme influência política dos cristãos conservadores. Se hou-
vesse uma forte correlação entre o conservadorismo cristão e a saúde da sociedade, era de

esperar que víssemos algum sinal dela nos estados vermelhos. Não vemos. Das 55 cidades

com as taxas mais baixas de crimes violentos, 62% estão nos estados "azuis" [democratas]

e 38% estão nos estados "vermelhos" [republicanos]. Das 25 cidades mais perigosas, 76%

ficam nos estados vermelhos, e 24% nos estados azuis. Aliás, três das cinco cidades mais

perigosas dos Estados Unidos ficam no devoto estado do Texas. Os doze estados com taxas

mais elevadas de arrombamentos são vermelhos. Vinte e quatro dos 29 estados com as

mais elevadas taxas de assalto são vermelhos. Dos 22 estados com as maiores taxas de

assassinato, dezessete são vermelhos.*

Pesquisas sistemáticas tendem a sustentar esses dados correlacionais.

Gregory S. Paul, no Journal of Religion and Society (2005), comparou dezessete

nações economicamente desenvolvidas e chegou à devastadora conclusão de

que "taxas mais altas de crença num criador e de culto a ele se correlacionam

com taxas mais altas de homicídio, mortalidade juvenil e precoce, taxas de

infecção por doenças sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e

aborto nas democracias prósperas". Dan Dennett, em Quebrando o encanto,

faz comentários sardônicos sobre esses estudos em geral:

Inútil dizer que esses resultados abalam tão fortemente as alegações-padrão de que há

uma virtude moral maior entre os religiosos que até surgiu uma onda considerável de

pesquisas adicionais iniciadas por organizações religiosas que tentam refutá-las [...] uma

coisa de que podemos ter certeza é que, se houver um relacionamento positivo e

significativo entre o comportamento moral e a filiação, a prática ou a crença religiosa, ele

logo será descoberto, já que tantas organizações religiosas estão tão ansiosas para confir-
mar cientificamente suas convicções tradicionais sobre a questão. (Elas estão bastante

impressionadas com o poder da ciência para detectar a verdade quando ela apoia aquilo

em que já acreditam.) Cada mês que passa sem que apareça essa demonstração reforça a

suspeita de que as coisas simplesmente não são assim.

A maioria das pessoas sensatas concorda que a moralidade na ausência

de policiamento é mais verdadeiramente moral que o tipo de falsa moralidade

* Note que essas convenções para as cores nos Estados Unidos são exatamente o contrário das da Grã-

Bretanha, onde o azul é a cor do Partido Conservador e o vermelho, assim como no resto do mundo, é a cor

tradicionalmente associada com a esquerda política.

que desaparece assim que a polícia entra em greve ou que a câmera de

vigilância é desligada, seja a câmera de verdade, monitorada na delegacia, ou

uma câmera imaginária no céu. Mas talvez seja injusto interpretar a pergunta "Se

não há Deus, por que se dar ao trabalho de ser bom?" de modo tão cínico.* Um

pensador religioso poderia oferecer uma interpretação mais genuinamente

moral, na linha da seguinte declaração de um apologista imaginário. "Se você

não acredita em Deus, não acredita que existem padrões absolutos de

moralidade. Com a maior boa vontade do mundo, você pode até querer ser uma

boa pessoa, mas corno vai decidir o que é bom e o que é ruim? Só a religião pode

fornecer definitivamente os padrões de bem e mal. Sem a religião você precisará

construí-los. Isso seria a moralidade sem normas: uma moralidade a olho. Se a

moralidade não é nada mais que uma questão de opção, Hitler poderia alegar

estar sendo moral por seus próprios padrões inspirados na eugenia, e tudo o que

o ateu pode fazer é ter uma escolha pessoal e viver sob uma orientação

diferente. O cristão, o judeu ou o muçulmano, pelo contrário, podem afirmar que

o mal tem um sentido absoluto, que vale para todos os tempos e todos os luga-
res, segundo o qual Hitler era completamente mau."

Mesmo que fosse verdade que precisamos de Deus para ser bons, isso

obviamente não tornaria a existência de Deus mais provável, apenas mais

desejável (muita gente não consegue enxergar a diferença). Mas não é disso que

se trata aqui. Meu apologista imaginário da religião não precisa admitir que

puxar o saco de Deus é a motivação religiosa para fazer o bem. A alegação dele é

que, venha de onde vier a motivação para fazer o bem, sem Deus não haveria

padrão para decidir o que é o bem. Cada um de nós criaria nossa própria

definição de bem e agiria de acordo com ela. Princípios morais que se baseiam

somente na religião (em oposição, por exemplo, à "regra de ouro", que

normalmente é associada à religião mas que pode ter outra origem) podem ser

chamados de absolutistas. Bem é bem e mal é mal, e não vamos ficar decidindo

casos isolados, por exemplo, pelo fato de alguém sofrer ou não. Meu apologista

* H. L. Mencken, de novo com seu sarcasmo característico, definiu a consciência como a voz interior que nos

adverte de que alguém pode estar olhando.

da religião defenderia que só a religião pode fornecer a base para que se decida

o que é o bem.

Alguns filósofos, notadamente Kant, tentaram tirar morais absolutas de

fontes não religiosas. Embora fosse religioso, como era quase inevitável naquela

época,* Kant tentou basear a moralidade no dever pelo dever, e não em nome

de Deus. Seu famoso imperativo categórico convoca-nos a "agir somente

segundo a máxima tal que possamos ao mesmo tempo querer que se torne lei

universal". Isso funciona direitinho para o exemplo de mentir.

Imagine um mundo em que as pessoas mintam por princípio, onde a

mentira seja considerada uma coisa boa e moral. Num mundo assim, mentir

deixaria de fazer sentido. Mentir precisa por definição da pressuposição da

verdade. Se um princípio moral é algo que devemos desejar que todos sigam,

mentir não pode ser um princípio moral, porque o próprio princípio desmorona-
ria, sem sentido. Mentir, como norma de vida, é inerentemente instável. Em

termos mais gerais, o egoísmo, ou o parasitismo explorador da boa vontade dos

outros, pode funcionar para mim, um indivíduo egoísta isolado, e me dar

satisfação pessoal. Mas não posso desejar que todo mundo adote o parasitismo

egoísta como princípio moral, no mínimo porque senão eu não teria ninguém

para explorar.

O imperativo kantiano parece funcionar para o dizer a verdade e para

alguns outros casos. Não é tão fácil assim ampliá-lo para a moralidade em geral.

Apesar de Kant, é tentador concordar com meu apologista hipotético que morais

absolutistas costumam ser motivadas pela religião. É sempre errado tirar uma

paciente terminal de seu sofrimento a pedido dela própria? É sempre errado

fazer amor com um integrante de seu próprio sexo? É sempre errado matar um

embrião? Há quem ache que sim, e suas bases são absolutas. Eles não toleram

argumentação nem debate. Qualquer um que discorde merece ser morto:

metaforicamente, é claro, não literalmente — exceto no caso de alguns médicos

de clínicas de aborto americanas (veja o próximo capítulo). Felizmente, no

entanto, as morais não têm de ser absolutas.

* Essa é a interpretação-padrão das idéias de Kant. O destacado filósofo A. C. Grayling, porém, argumentou

plausivelmente (New Humanist, julho-agosto de 2006) que, embora Kant seguisse publicamente as convenções

religiosas de seu tempo, na verdade ele era ateu.

Os filósofos morais são os profissionais em se tratando de pensar sobre o

certo e o errado. Como disse sucintamente Robert Hinde, eles concordam que

"os preceitos morais, embora não necessariamente construídos pela razão,

devem ser defensáveis pela razão".89 Eles se classificam de muitas maneiras, mas

na terminologia moderna a principal divisão é entre "deontologistas" (como

Kant) e "conseqüencialistas" (incluindo "utilitaristas" como Jeremy Bentham,

1748-1832). Deontologia é um nome bonito para a crença de que a moralidade

consiste em obedecer a regras. É literalmente a ciência do dever, do grego para

"aquilo que é obrigatório". A deontologia não é bem a mesma coisa que

absolutismo moral, mas para a maioria dos propósitos de um livro sobre religião

não há necessidade de enfatizar a distinção. Os absolutistas acreditam que

existem absolutos do certo e do errado, imperativos cuja correção não faz

referência a suas conseqüências. Os conseqüencialistas acham, mais

pragmaticamente, que a moralidade de uma ação deve ser julgada por suas

conseqüências. Uma versão do conseqüencialismo é o utilitarismo, a filosofia as-
sociada a Bentham, a seu amigo James Mill (1773-1836) e ao filho dele, John

Stuart Mill (1806-73). O utilitarismo é freqüentemente resumido na máxima de

Bentham, que é de uma imprecisão infeliz: "A maior felicidade para o maior

número de pessoas é a fundação das morais e da legislação".

Nem todo absolutismo deriva da religião. De qualquer maneira, é muito

difícil defender morais absolutistas em outras bases que não as religiosas. O

único concorrente em que consigo pensar é o patriotismo, especialmente em

tempos de guerra. Como disse o destacado cineasta espanhol Luis Buñuel, "Deus

e a Pátria são um time imbatível; eles quebram todos os recordes de opressão e

derramamento de sangue". Os oficiais que trabalham no recrutamento apelam

fortemente ao senso de dever patriótico de suas vítimas. Na Primeira Guerra

Mundial, as mulheres entregavam plumas brancas para jovens que não

estivessem fardados.

Oh, não queremos perdê-lo, mas achamos que você deve ir,

Pois seu rei e seu país precisam que você vá. *

* "Oh, we don't want to lose you, but we think you ought to go,/ For your King and your country both need you

só." Trecho de uma música usada pela Inglaterra durante a Primeira Guerra para incentivar o alistamento. (N.

T.)

As pessoas ignoravam as objeções conscienciosas, mesmo as do país

inimigo, porque o patriotismo era tido como uma virtude absoluta. É difícil ser

mais absoluto que o "Meu país, certo ou errado" do soldado profissional, pois o

slogan faz com que você se comprometa a matar quem quer que os políticos de

algum tempo futuro resolvam chamar de inimigos. O raciocínio conse-
qüencialista pode influenciar a decisão política de ir à guerra, mas, uma vez

declarada a guerra, o patriotismo absoluto toma conta com uma força que não

se vê fora da religião. Um soldado que permitir que suas idéias de moralidade

conseqüencialista o convençam a não partir para o ataque tem grande

probabilidade de enfrentar a corte marcial ou até de ser executado.

O ponto de partida para esta discussão sobre filosofia moral foi uma

afirmação religiosa hipotética de que, sem um Deus, as morais são relativas e

arbitrárias. Deixando de lado Kant e outros filósofos morais sofisticados, e dando

o devido reconhecimento ao fervor patriótico, a fonte preferida da moralidade

absoluta é normalmente algum tipo de livro sagrado, interpretado como

detentor de uma autoridade que supera em muito sua capacidade histórica de

justificá-la. Na realidade, os adeptos da autoridade das Escrituras demonstram

uma curiosidade perturbadoramente pequena sobre as origens históricas

(comumente duvidosas) de seus livros sagrados.

 

Continuação do capítulo,mostrando que a moralidade não vem da religião:

 

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Existem duas maneiras pelas quais as Escrituras podem servir de fonte para os princípios morais ou normas para a vida. Uma é por instrução direta, como por exemplo com os Dez Mandamentos, que são objeto de tanta briga nas guerras culturais do interior americano. A outra é pelo exemplo: Deus, ou algum outro personagem bíblico, pode servir como alguém em quem se espelhar. Os dois caminhos escriturais, se seguidos religiosamente (o advérbio está sendo usado em seu sentido metafórico, mas lembrando sua origem), incentivam um sistema de princípios morais que qualquer pessoa moderna e civilizada, seja ela religiosa ou não, acharia — não tenho como dizer de modo mais delicado — repulsivo.
 
É preciso dizer, para ser justo, que grande parte da Bíblia não é sistematicamente cruel, mas simplesmente estranha, como seria de esperar de uma antologia caótica de documentos desconjuntados, escrita, revisada, traduzida, distorcida e "melhorada" por centenas de autores anónimos, editores e copiadores, que desconhecemos e que não se conheciam entre si, ao longo de nove séculos.
 
Isso pode explicar uma parte das esquisitices da Bíblia. Mas infelizmente é esse mesmo volume estranho que fanáticos religiosos consideram a fonte infalível de nossos princípios morais e nossas normas para viver.
 
Quem pretende basear sua moralidade literalmente na Bíblia ou nunca a leu ou não a entendeu, como observou bem o bispo John Shelby Spong, em The sins of scripture [Os pecados das Escrituras]. O bispo Spong, aliás, é um bom exemplo de um bispo liberal cujas crenças são tão avançadas que chegam a ser quase irreconhecíveis para a maioria dos que se autodenominam cristãos. Um equivalente britânico é Richard Holloway, que se aposentou recentemente como bispo de Edimburgo. O bispo Holloway chega a se descrever como um "cristão em recuperação". Mantive uma discussão pública com ele em Edimburgo, que foi um dos encontros mais estimulantes e interessantes que já tive.
 
 
O ANTIGO TESTAMENTO
 
 
Comece no Gênesis com a adorada história de Noé, derivada do mito babilónico de Uta-Napishtim e conhecida em mitologias mais antigas de várias culturas. A lenda dos animais entrando na arca aos pares é linda, mas a moral da história de Noé é assustadora. Deus condenou os seres humanos e resolveu (com a exceção de uma família) afogar todos eles, incluindo as crianças, e também, por via das dúvidas, o resto dos animais (presumivelmente inocentes).
 
É claro que os teólogos, irritados, protestarão dizendo que não se interpreta mais o livro do Gênesis em termos literais. Mas é exatamente isso que estou dizendo! Escolhemos em que pedacinhos das Escrituras devemos acreditar, e quais pedacinhos descartar, por símbolos ou alegorias. Essa escolha é uma decisão pessoal, tanto quanto a decisão do ateu de seguir este ou aquele preceito moral foi uma decisão pessoal, sem nenhum fundamento absoluto. Se uma coisa é "moralidade a olho", a outra também é.
 
De qualquer maneira, apesar das boas intenções do teólogo sofisticado, um número assustadoramente grande de pessoas ainda interpreta as Escrituras, incluindo a história de Noé, de forma literal. De acordo com o Gallup, entre elas estão aproximadamente 50% do eleitorado dos Estados Unidos. Também estão, sem dúvida, muitos dos religiosos asiáticos que atribuíram o tsunami de 2004 não a um movimento tectônico, mas aos pecados humanos, desde a bebida e a dança nos bares até a violação de alguma regra estúpida do Shabat.
 
Afundados na história de Noé e ignorantes de tudo o que não seja o aprendizado bíblico, como podemos condená-los? Toda a educação deles levou-os a encarar os desastres naturais como coisas ligadas aos problemas humanos, castigos pelas infrações humanas, e não algo tão impessoal como placas tectônicas. Aliás, que egocentrismo presunçoso é acreditar que eventos sismológicos, da escala em que um deus (ou uma placa tectônica) tem de atuar, sempre têm de estar conectados aos seres humanos. Por que um ser divino, preocupado com a criação e a eternidade, iria se incomodar com as transgressõezinhas dos homens? Nós, seres humanos, damo-nos tanta importância que até elevamos nossos minúsculos "pecadilhos" ao nível de relevância cósmica!
 
Quando entrevistei, para a televisão, o reverendo Michael Bray, um proeminente ativista americano antiaborto, perguntei a ele por que os cristãos evangélicos são tão obcecados pelas inclinações sexuais pessoais como a homossexualidade, que são coisas que não interferem na vida de mais ninguém. A resposta dele invocava certa autodefesa. Cidadãos inocentes correm o risco de se transformar em danos colaterais quando Deus resolver fazer um desastre natural atingir uma cidade porque ela abriga pecadores. Em 2005, a bela cidade de Nova Orleans foi catastroficamente inundada depois da passagem de um furacão, o Katrina. Houve registros de que o reverendo Pat Robertson, um dos televangelistas mais conhecidos dos Estados Unidos, que já foi candidato a presidente, responsabilizou uma comediante lésbica que por acaso morava em Nova Orleans pelo furacãoEra de esperar que um Deus onipotente adotasse uma abordagem um pouco mais precisa para destruir pecadores: um infarto discreto, talvez, em vez da destruição a granel de uma cidade inteira só porque calhou de ela ser o domicílio de uma comediante lésbica.
 
Em novembro de 2005, os cidadãos de Dover, na Pensilvânia, derrubaram pelo voto, da diretoria da escola local, a lista inteira de fundamentalistas que havia dado notoriedade à cidade, para não dizer ridicularizado-a, ao tentar tornar obrigatório o ensino do design inteligente. Quando Pat Roberson soube que os fundamentalistas tinham sido democraticamente derrotados nas urnas, fez uma séria advertência a Dover: "Gostaria de dizer aos bons cidadãos de Dover que, se houver um desastre em sua região, não apelem a Deus. Vocês acabaram de rejeitá-lo de sua cidade, e não questionem por que ele não os ajudou quando os problemas começarem, se eles começarem, e não estou dizendo que vão começar. Mas, se começarem, lembrem-se de que vocês acabaram de votar para que Deus deixasse sua cidade. E, se isso acontecer, não peçam a ajuda dele, porque ele pode não estar lá."
 
Pat Robertson seria só uma piada inofensiva se fosse menos representativo daqueles que hoje são os detentores do poder e da influência nos Estados Unidos.
 
Na destruição de Sodoma e Gomorra, o equivalente a Noé, escolhido para ser poupado junto com sua família por ser especialmente correto, foi Ló, sobrinho de Abraão. Dois anjos foram enviados a Sodoma para avisar Ló e dizer que ele saísse da cidade antes da chegada do enxofre. Ló recebeu os anjos com hospitalidade, e então todos os homens de Sodoma reuniram-se em torno da casa dele e exigiram que Ló entregasse os anjos para que eles pudessem (o que mais?) sodomizá-los: "Onde estão os homens que vieram para tua casa esta noite? Traze-os para que deles abusemos" (Gênesis 19, 5). A bravura de Ló ao recusar-se a ceder à exigência sugere que Deus deve até ter tido razão ao considerá-lo o único homem de bem de Sodoma. Mas a auréola de Ló fica manchada com os termos de sua recusa: "Rogo-vos, meus irmãos, que não façais mal; tenho duas filhas, virgens, e vo-las trarei; tratai-as como vos parecer, porém nada façais a estes homens, porquanto se acham sob a proteção de meu teto(Gênesis 19, 7-8). Por mais estranha que a história possa parecer, ela certamente nos indica alguma coisa sobre o respeito reservado às mulheres nessa cultura intensamente religiosa.
 
No final, a oferta que Ló fez da virgindade de suas filhas mostrou-se desnecessária, pois os anjos conseguiram afastar os agressores cegando-os por milagre. Eles então advertiram Ló para que partisse imediatamente com sua família e seus animais, porque a cidade estava prestes a ser destruída. A família inteira escapou, com a exceção da pobre mulher de Ló, que o Senhor transformou num pilar de sal por ter cometido a ofensa — relativamente leve, seria de imaginar — de olhar para trás para ver os fogos de artifício.
 
As duas filhas de Ló fazem uma breve reaparição na história. Depois de a mãe delas ter sido transformada num pilar de sal, elas moram com o pai numa caverna, no alto de uma montanha. Carentes de companhia masculina, elas decidem embebedar o pai e copular com ele. Ló não percebeu quando sua filha mais velha chegou a sua cama ou quando saiu dela, mas não estava bêbado demais para engravidá-la. Na noite seguinte as duas filhas combinaram que era a vez da mais nova. Novamente Ló estava bêbado demais para perceber, e a engravidou também (Gênesis 19, 31-36). Se essa família tão perturbada era o melhor que Sodoma tinha a oferecer em termos de princípios morais, dá até para começar a sentir certa solidariedade para com Deus e seu enxofre punitivo.
 
A história de Ló e os sodomitas ressoa de forma assustadora no capítulo 19 do livro dos Juizes, quando um levita (padre) não identificado viajava com sua concubina em Jebus. Eles passaram a noite na casa de um velho hospitaleiro. Enquanto jantavam, os homens da cidade chegaram e bateram à porta, exigindo que o velho entregasse seu convidado "para que dele abusemos". Praticamente com as mesmas palavras de Ló, o velho disse: "Não, irmãos meus, não façais semelhante mal; já que o homem está em minha casa, não façais tal loucura. Minha filha virgem e a concubina dele trarei para fora; humilhai-as e fazei delas o que melhor vos agrade; porém a este homem não façais semelhante loucura" (Juizes 19, 23-24). Aparece novamente o ethos misógino, firme e forte. Acho o termo "humilhai-as" especialmente aterrador. Divirtam-se humilhando e estuprando minha filha e a concubina desse padre, mas mostrem o devido respeito por meu convidado, que, afinal de contas, é homem.
 
Apesar da semelhança entre as duas histórias, o dénouement foi menos feliz para a concubina do levita que para as filhas de Ló. O levita a entrega à multidão, que a estupra coletivamente a noite inteira: "E eles a forçaram e abusaram dela toda a noite até pela manhã; e, subindo a alva, a deixaram. Ao romper da manhã, vindo a mulher, caiu à porta da casa do homem, onde estava o seu senhor, e ali ficou até que se fez dia claro" (Juizes 19, 25-26). De manhã, o levita encontra a concubina prostrada na porta e diz, com o que hoje consideraríamos de uma aspereza insensível: "Levanta-te, e vamos". Mas ela não se moveu. Estava morta. Então ele "tomou de um cutelo e, pegando a concubina, a despedaçou por seus ossos em doze partes; e as enviou por todos os limites de Israel". Sim, você leu certo. Pode olhar em Juizes 19, 29.
 
Caridosamente, atribuamos de novo tudo isso à esquisitice onipresente da Bíblia. De fato, a história não é tão completamente maluca quanto parece. Havia um motivo — provocar vingança — e deu resultado, pois o incidente causou uma guerra de desforra contra a tribo de Benjamim, na qual, como o capítulo 20 de Juizes ternamente registra, mais de 60 mil homens foram mortos.
 
Essa história é tão parecida com a de Ló que não dá para não especular se algum fragmento do manuscrito sem querer não se misturou em algum escritório esquecido de um monastério: uma ilustração da proveniência errática dos textos sagrados.
 
O tio de Ló, Abraão, foi o pai de todas as três "grandes" religiões monoteístas. Seu status patriarcal faz com que ele possa ser considerado um exemplo a ser tomado, quase como Deus. Mas que moralista moderno ia querer seguir seu exemplo?
 
Relativamente cedo em sua vida longa, Abraão foi para o Egito para fugir da fome, com sua mulher, Sara. Ele percebeu que uma mulher tão bonita seria cobiçada pelos egípcios e que portanto sua própria vida, como marido dela, poderia ficar em perigo. Então decidiu fazê-la passar por sua irmã. Como tal, ela foi levada para o harém do faraó, e Abraão, em conseqüência, enriqueceu com o favorecimento do faraó. Deus desaprovou o pequeno arranjo, e enviou pragas sobre o faraó e sua casa (por que não sobre Abraão?). O faraó, compreensivelmente nervoso, exigiu saber por que Abraão não lhe contara que Sara era sua mulher. Ele então a devolveu a Abraão e expulsou os dois do Egito (Gênesis 12, 18-19).
 
O estranho é que aparentemente o casal tentou usar o mesmo golpe de novo, dessa vez com Abimeleque, rei de Gerar. Também ele foi induzido por Abraão a casar-se com Sara, novamente tendo sido levado a crer que ela era irmã de Abraão, não mulher dele (Gênesis 20, 2-5). Também ele manifestou sua indignação, em termos quase idênticos aos do faraó, e é difícil não se solidarizar com os dois. Seria a semelhança uma outra indicação da falta de confiabilidade do texto?
 
Esses episódios desagradáveis da história de Abraão não passam de pecadilhos se comparados à infame lenda do sacrifício de seu filho Isaac (as escrituras muçulmanas contam a mesma história sobre o outro filho de Abraão, Ismael). Deus determinou que Abraão transformasse seu filho querido numa oferenda em forma de fogo. Abraão construiu um altar, colocou lenha sobre ele e amarrou Isaac sobre a lenha. A faca assassina já estava em sua mão quando um anjo interveio dramaticamente, com a notícia de uma mudança de planos de última hora: Deus estava apenas brincando, no fim das contas, "tentando" Abraão e testando sua fé.
 
Um moralista moderno não poderia deixar de imaginar como uma criança conseguiria se recuperar de tamanho trauma psicológico. Pelos padrões da moralidade moderna [e lembremos que Deus, sendo atemporal, não pode estar preso às limitações culturais de povos primitivosessa história vergonhosa é ao mesmo tempo um exemplo de abuso infantil, intimidação em dois relacionamentos assimétricos de poder e o primeiro uso registrado da defesa de Nuremberg: "Eu só estava seguindo ordens".
 
Mesmo assim, a lenda é um dos grandes mitos fundadores das três religiões monoteístas. Mais uma vez, os teólogos modernos protestarão dizendo que a história do sacrifício de Isaac por Abraão não deve ser encarada como um fato literal. E, mais uma vez, a resposta adequada tem dois ladosEm primeiro lugar, muitíssima gente, até hoje, encara, sim, as Escrituras como fatos literais, e elas têm bastante poder político sobre o resto de nós, especialmente nos Estados Unidos e no mundo islâmico. Em segundo, se não for como fato literal, como deveríamos encarar a história? Como uma alegoria? Alegoria de quê, então? Certamente de nada digno de louvor. Como lição moral? Mas que tipo verdadeiro de princípio moral pode-se tirar dessa história apavorante?
 
Lembre-se de que só estou tentando dizer, por enquanto, que na verdade nós [incluindo os religiosos ainda não inteiramente psicóticos] não retiramos nossos princípios morais das Escrituras. Ou, se retiramos, escolhemos os trechos mais agradáveis daqueles textos e rejeitamos os desagradáveis. Mas aí precisamos ter algum critério independente para decidir quais trechos são os morais: um critério que, venha de onde vier, não pode vir da própria escritura, e está supostamente disponível para todos nós, sejamos ou não religiosos.
 
Os apologistas bem que tentam resgatar alguma decência para o personagem 'Deus' nessa história deplorável. Não foi bom que Deus tenha poupado a vida de Isaac no último minuto?
 
Na improvável possibilidade de algum de meus leitores ter sido convencido por esse exemplar obsceno de alegação, indico a ele outra história sobre o sacrifício humano, que teve um final mais infeliz. Em Juízes, capítulo 11, o líder militar Jefté fez uma troca com Deus combinando que, se Deus garantisse a vitória de Jefté sobre os amonitas, Jefté sacrificaria, sem falta, na fogueira, "aquele que sair primeiro da porta da minha casa e vier ao meu encontro, voltando eu". Jefté tinha mesmo a intenção de derrotar os amonitas ("uma grande derrota") e voltou para casa vitorioso. Como era de esperar, sua filha, única filha, saiu da casa para recebê-lo (com tambores e com danças) e — que pena — foi a primeira a da porta sair. Jefté rasgou suas roupas, compreensivelmente, mas não havia nada que ele pudesse fazer. Deus estava obviamente ansioso pela oferenda prometida, e dadas as circunstâncias a filha, respeitosamente, concordou em ser sacrificada [ou pelo menos isso é o que se diz, pois o mais provável é que ela tenha sido sacrificada à força bruta]. Ela só pediu permissão para ficar dois meses nas montanhas para lamentar sua virgindade. Ao fim desse período ela voltou, obediente, e Jefté a cozinhouDeus [o 'deus' do Antigo Testamento] não achou por bem intervir nesse caso.
 
A ira monumental de Deus sempre que seu povo flertava com um deus rival remete ao pior tipo de ciúme sexual, novamente não deve parecer a um moralista moderno um exemplo a ser seguido. A tentação da infidelidade sexual é prontamente compreensível, mesmo para aqueles que não sucumbem a ela, e está sempre presente na ficção e na dramaturgia, de Shakespeare às farsas. Mas a tentação aparentemente irresistível de nos prostituirmos com deuses estranhos é algo com que nós, modernos, temos dificuldade de nos solidarizar [e algo que demonstra que esse não era um povo sério, mas sim um bando de bobalhões estupidamente crédulos e supersticiosos, prontos a acreditar em qualquer besteira mística que se lhes dissesse]. Aos meus olhos ingénuos, "Amar a Deus sobre todas as coisas" seria um mandamento de fácil cumprimento: uma moleza, pode-se pensar, perto de "Não cobiçarás a mulher do próximo". Mesmo assim, em todo o Antigo Testamento, com a mesma regularidade previsível que numa farsa, basta Deus virar as costas por um minuto para os Filhos de Israel irem atrás de Baal, ou de alguma imagem esculpida. Ou, numa ocasião calamitosa, um bezerro de ouro...
 
Moisés, ainda mais que Abraão, é um candidato a exemplo para os seguidores de todas as três religiões monoteístas. Abraão pode ser o patriarca original, mas, se alguém deve ser chamado de fundador doutrinário do judaísmo e das religiões que derivaram dele, esse alguém é Moisés. Quando do episódio do bezerro de ouro, Moisés estava longe dali, em segurança, a caminho do monte Sinai, em comunhão com Deus e recebendo as tábuas de pedra esculpidas por ele. As pessoas lá embaixo (que estavam proibidas até de encostar na montanha sob pena de serem mortas) não perderam tempo: "Mas, vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, acercou-se de Arão e lhe disse: Levanta-te, faze-nos deuses que vão adiante de nós; pois, quanto a este Moisés, o homem que nos tirou do Egito, não sabemos o que lhe terá sucedido". (Êxodo 32, 1)
 
Arão conseguiu com que todos juntassem seu ouro, derreteu-o e fez um bezerro de ouro, divindade recém-inventada para a qual ele construiu então um altar, para que todos pudessem começar a fazer sacrifícios em nome dele. Bem, eles já deviam saber que não se podem fazer essas coisas assim, pelas costas de Deus. Ele pode estar lá no alto de uma montanha, mas é, afinal de contas, onisciente, e não perdeu tempo para despachar Moisés como seu policial. Moisés desceu a montanha correndo, carregando as tábuas de pedra em que Deus havia escrito os Dez Mandamentos. Quando chegou e viu o bezerro de ouro, ficou tão furioso que derrubou as tábuas e as quebrou (depois Deus lhe deu peças de reposição, então não houve problema). Moisés pegou o bezerro de ouro, queimou-o, reduziu-o a pó, misturou-o com água e fez que as pessoas o engolissem. Depois disse a todo mundo na devota tribo de Levi que pegasse uma espada e matasse o máximo de gente possível. O montante chegou a 3 mil, o que, seria de esperar, já devia ser o suficiente para apaziguar a ira ciumenta de Deus. Mas não, Deus ainda não estava satisfeito. No último verso desse terrível capítulo, seu golpe de despedida foi lançar uma praga contra as pessoas que haviam sobrado, "porque fizeram o bezerro que Arão fabricara".
 
O livro dos Números conta como Deus incitou Moisés a atacar os midianitas. Seu exército tratou de matar todos os homens, e incendiar todas as cidades midianitas, mas poupou as mulheres e as criançasEsse comedimento piedoso dos soldados enfureceu Moisés, e ele ordenou que todos os meninos fossem mortos, e todas as mulheres que não fossem virgens"Porém todas as meninas, e as jovens que não coabitaram com algum homem, deitando-se com ele, deixai-as viver para vós outros" (Números 31, 18) [para que vós possais estuprá-las até não aguentarem mais...]. Não, Moisés não era uma pessoa digna de ser tomada como exemplo por moralistas modernos.
 
Quando os autores religiosos modernos associam algum significado simbólico ou alegórico ao massacre dos midianitas, o simbolismo vai na direção errada. Os pobres midianitas, pelo menos pelo que dá para saber pelo relato bíblico, foram vítimas de um genocídio em suas próprias terras. Mas seu nome só sobrevive na doutrina cristã naquele hino famoso (que ainda consigo cantar de cor depois de cinqüenta anos, em duas melodias diferentes, ambos em tons tristemente menores):
Cristão, tu os vê
No terreno sagrado?
Como os soldados de Mídian
Vagueiam e vagueiam por lá?
Cristão, levanta-te e ataca-os,
Contabilizando só os ganhos, não as perdas;
Ataca-os em nome
Da sagrada cruz.
 
Coitados dos midianitas, massacrados e difamados, serão lembrados somente como símbolos poéticos da maldade universal num hino vitoriano.
 
O deus rival Baal parece ter sido sempre uma tentação sedutora para desviar a adoração. Em Números, no capítulo 25, muitos israelitas são convencidos por mulheres moabitas a servirem a Baal. Deus reage com sua fúria característica. Ele ordena a Moisés: "Toma todos os cabeças do povo, e enforca-os ao Senhor diante do sol, e o ardor da ira do Senhor se retirará de Israel". É impossível não se assombrar com a visão tão extraordinariamente draconiana que se tem do pecado de flertar com deuses rivais. Para nosso senso atual de valores e de justiça, ele parece um pecado pouco importante se comparado, por exemplo, a oferecer sua filha para uma gangue de estupradores [ou encostar a faca na garganta de um filho inocente só porque se 'ouviu vozes' mandando fazê-lo, como foi o caso do esquizofrênico Abraão...]. É mais um exemplo do distanciamento entre os princípios morais das Escrituras e os modernos (fica-se tentado a dizer civilizados). Ele é, claro, facilmente compreensível nos termos da teoria dos memes, e das características de que uma divindade precisa para sobreviver no universo memético.
 
A farsa tragicômica do ciúme maníaco de Deus contra outros deuses reaparece constantemente em todo o Antigo Testamento. Ela motiva os primeiros Dez Mandamentos (aqueles nas tábuas que Moisés quebrou: Êxodo 20, Deuteronômio 5), e é ainda mais proeminente nos mandamentos substitutos (bastante diferentes) que Deus entregou para substituir as tábuas quebradas (Êxodo 34). Depois de prometer expulsar de sua terra natal os infelizes amoritas, cananeus, eteus, perizeus, eveus e jebuseus, Deus vai ao que realmente interessa: deuses rivais!
 
"[...] os seus altares derrubareis, e as suas estátuas quebrareis, e os seus bosques cortareis. Porque não te inclinarás diante de outro deus; pois o nome do Senhor é Zeloso; é um Deus zeloso. Para que não faças aliança com os moradores da terra, e quando eles se prostituírem após os seus deuses, ou sacrificarem aos seus deuses, tu, como convidado deles, comas também dos seus sacrifícios. E tomes mulheres das suas filhas para os teus filhos, e suas filhas, prostituindo-se com os seus deuses, façam que também teus filhos se prostituam com os seus deuses. Não te farás deuses de fundição." (Êxodo 34, 13-17)
 
Eu sei, eu sei, é claro, os tempos mudaram, e nenhum líder religioso de hoje em dia (tirando os do Talibã ou seus equivalentes cristãos americanos) pensa como Moisés. Mas é isso que estou dizendo. Tudo o que estou afirmando é que a moralidade verdadeira, venha de onde vier, não se origina da Bíblia.
 
Os apologistas não podem sair pela tangente alegando que a religião fornece a eles alguma espécie de diretriz para definir o que é bom e o que é ruim — uma fonte privilegiada indisponível para os ateus. Eles não podem se safar dizendo isso, nem mesmo quando usam seu truque favorito, o de interpretar as Escrituras selecionadas como "simbólicas", e não literais. Por que critério alguém decide quais trechos são simbólicos e quais são literais?
 
limpeza étnica iniciada nos tempos de Moisés é elevada à fruição sangrenta no livro de Josué, um texto marcante pelos massacres sangrentos que registra e o apreço xenofóbico com que faz isso. Como diz aquela velha e bela canção [protestante], exultante: "Josué lutou na batalha de Jericó, e as muralhas ruíram [...] Não há ninguém como o velho e bom Josué, na batalha de Jericó".
 
O bom e velho Josué não sossegou enquanto "tudo quanto havia na cidade eles destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento" (Josué 6, 21).
 
Mais uma vez, protestarão os teólogos, isso não aconteceu de verdade. Não mesmo — segundo a 'estória', as muralhas ruíram ao mero som dos homens gritando e tocando buzinas, portanto realmente não aconteceu de verdade —, mas não é essa a questão. A questão é que, verdade ou não, a Bíblia é mostrada a nós como a fonte de nossa moralidade. E a história bíblica da destruição de Jericó por Josué, e da invasão da Terra Prometida em geral, não se distingue em termos morais da invasão da Polónia por Hitler, ou dos massacres dos curdos e dos árabes dos pântanos do sul por Saddam Hussein.
 
A Bíblia pode ser uma obra de ficção interessante e poética [em alguns pontos], mas não é o tipo de livro que deveria ser dado às crianças para formar seus princípios morais. Por sinal, a história de Josué em Jericó é tema de uma interessante experiência sobre a moralidade infantil, que será discutida mais para a frente neste capítulo.
 
Não pense, aliás, que o personagem Deus na história cultivou alguma dúvida ou escrúpulo sobre os massacres e genocídios que acompanharam a tomada da Terra Prometida. Suas ordens, pelo contrário, como mostra o exemplo em Deuteronômio 20, eram brutalmente explícitas. Ele fazia uma clara distinção entre as pessoas que viviam na terra que era requisitada e as pessoas que viviam distantes dela. Estas últimas deveriam ser convidadas a se render pacificamente [e se entregarem à escravidão]. Se se recusassem, todos os homens deveriam ser mortos e as mulheres levadas para procriar. Num contraste com esse tratamento relativamente humano, veja o que era reservado àquelas tribos que tinham o azar de já residirem na Lebensraum prometida: "Quando o Senhor teu Deus te houver introduzido na terra, à qual vais para a possuir, e tiver lançado fora muitas nações de diante de ti, os eteus, e os girgaseus, e os amorreus, e os cananeus, e os perizeus, e os eveus, e os jebuseus, sete nações mais numerosas e mais poderosas do que ti, e o Senhor teu Deus as tiver dado diante de ti, para as ferir, totalmente as destruirás; não farás com elas aliança, nem terás piedade delas".
 
Será que as pessoas que tomam a Bíblia como inspiração para a retidão moral têm alguma noção do que realmente está escrito nela?
 
As seguintes ofensas merecem a pena de morte, de acordo com o Levítico 20: amaldiçoar os pais; cometer adultério; ter relações sexuais com a madrasta ou com a enteada; a homossexualidade, casar com uma mulher e com a filha dela; o bestialismo (e, como se já não fosse o bastante, o pobre animal deve ser morto também). Também é executado, é claro, quem trabalhar no Shabat: a questão é relembrada a toda hora em todo o Antigo Testamento.
 
Em Números 15, os filhos de Israel encontram um homem apanhando lenha no dia proibido. Eles o prendem e então perguntam a Deus o que fazer com ele. Só que Deus não estava a fim de meias medidas naquele dia. "Tal homem será morto; toda a congregação o apedrejará fora do arraial. Levou-o, pois, toda a congregação para fora do arraial, e o apedrejaram; e ele morreu." Será que o inofensivo apanhador de lenha não tinha uma mulher e filhos para lamentar sua morte? Teria ele chorado de medo quando as primeiras pedras voaram, e gritado de dor enquanto a fuzilaria atingia sua cabeça?
 
O que me choca hoje em dia nessas histórias não é que elas tenham acontecido de verdade. Provavelmente não aconteceram [pois a bíblia não é nada confiável mesmo]. O que me deixa de queixo caído é que as pessoas de hoje em dia queiram basear sua vida num exemplo tão aterrador quanto o do tal Javé — e, pior ainda, que queiram impor esse mesmo monstro do mal (seja ele fato ou ficção) ao resto de nós.
 
O poder político dos guardiães americanos dos Dez Mandamentos é especialmente lamentável naquela grande República, cuja Constituição, afinal de contas, foi elaborada por homens iluministas em termos estritamente laicos. Se levarmos os Dez Mandamentos a sério, teremos que classificar a adoração aos deuses errados, e a fabricação de imagens esculpidas, em primeiro e segundo lugar entre todos os pecados. Em vez de condenar o vandalismo inenarrável do Talibã, que dinamitou os Budas de 45 metros de altura de Bamiyan, nas montanhas do Afeganistão, nós os elogiaríamos por sua devoção. Aquilo que consideramos vandalismo por parte deles certamente foi motivado por um zelo religioso sincero. Esse fato é atestado em cores fortes por uma história bizarra, que foi destaque no The Independent (de Londres) de 6 de agosto de 2005. Sob a manchete "A destruição de Meca", na primeira página, o The Independent afirmou:
 
"A histórica Meca, o berço do islã, está sendo sepultada num massacre sem precedentes perpetrado por fanáticos religiosos. Quase tudo na rica e multifacetada história da cidade sagrada já se perdeu [...] Hoje a cidade natal do profeta Maomé enfrenta as escavadeiras, com a conivência de autoridades religiosas sauditas, cuja interpretação linha-dura do islã as está fazendo destruir seu próprio patrimônio [...] O motivo por trás da destruição é o medo fanático dos wahhabistas de que lugares de interesse histórico e religoso possam dar origem à idolatria ou ao politeísmo, à adoração de múltiplos deuses, potencialmente iguais. A prática da idolatria ainda é, na Arábia Saudita, em princípio, punível pela decapitação.”
 
 
Não acredito que haja um ateu no mundo que demoliria Meca — ou Chartres, a York Minster ou Notre Dame, o Shwedagon, os templos de Kyoto ou, claro, os Budas de Bamiyan. Como disse o físico americano e prémio Nobel Steven Weinberg, "a religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem ela, teríamos gente boa fazendo coisas boas e gente ruim fazendo coisas ruins. Mas, para que gente boa faça coisas ruins, é preciso a religião".
 
Blaise Pascal (o da aposta) disse algo parecido: "Os homens nunca fazem o mal tão plenamente e com tanto entusiasmo como quando o fazem por convicção religiosa".
 
Meu principal objetivo aqui não foi mostrar que não devemos tirar nossos princípios morais das Escrituras (embora essa seja minha opinião). Meu objetivo foi demonstrar que nós (e isso inclui as pessoas religiosas) na verdade não tiramos nossos princípios morais das EscriturasSe tirássemos, observaríamos estritamente o dia de descanso e acharíamos justo e adequado executar quem preferir não observá-lo. Apedrejaríamos até a morte uma noiva que não conseguisse provar sua virgindade, se o marido anunciasse estar insatisfeito com ela. Executaríamos crianças desobedientes.
 
Mas espere aí. Talvez eu esteja sendo injusto. Os bons cristãos terão protestado durante todo este trecho: todo mundo sabe que o Antigo Testamento é bem desagradável. O Novo Testamento de Jesus desfaz o prejuízo e conserta tudo. Não é verdade?
 
O NOVO TESTAMENTO É MELHOR?
 
 
Bom, não há como negar que, do ponto de vista moral, Jesus é um enorme avanço se comparado com o ogro cruel do Antigo Testamento. Se é que existiu, Jesus (ou quem quer que tenha escrito suas pretensas falas) foi certamente um dos grandes inovadores éticos da história. O Sermão da Montanha é bastante progressista. Seu "ofereça a outra face" antecipou Gandhi e Martin Luther King em 2 mil anos. Não foi à toa que escrevi um artigo chamado "Ateus por Jesus" (e depois tive o prazer de ganhar de presente uma camiseta com esses dizeres).
 
Mas a superioridade moral de Jesus reforça minha tese. Jesus não se contentou em retirar sua ética das Escrituras sob as quais foi criado. Ele rompeu explicitamente com elas, por exemplo quando esvaziou as advertências duras contra desobedecer ao Shabat. "O Shabat foi feito para o homem, não o homem para o Shabat" acabou sendo generalizado na forma de um sábio provérbio.
 
Como a principal tese deste capítulo é que nós não tiramos — nem deveríamos tirar — nossos princípios morais das Escrituras, é preciso fazer justiça e considerar Jesus um modelo para essa tese.
 
Os valores familiares de Jesus, é preciso admitir, não são lá muito exemplaresEle era seco, chegando a ser rude, com a própria mãe, e encorajou os discípulos a abandonar a família para segui-lo. "Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo." A comediante americana Julia Sweeney manifestou seu espanto em seu show-solo Letting go of God: "Não é o que os cultos fazem? Fazem você rejeitar sua família para que possam influenciá-lo".
 
Apesar de seus valores familiares meio estranhos, os ensinamentos éticos de Jesus foram — pelo menos em comparação ao desastre ético que é o Antigo Testamento — admiráveis; mas existem outros ensinamentos no Novo Testamento que nenhuma pessoa de bem apoiaria. Refiro-me especialmente à doutrina central do cristianismo: a da "expiação" do "pecado original". Esse ensinamento, que está no cerne da teologia do Novo Testamento, é quase tão repulsivo em termos morais quanto a história de Abraão preparando-se para transformar Isaac em churrasquinho, e parece-se com ela — e não se trata de um acaso, como Geza Vermes deixa claro em As várias faces de Jesus.
 
pecado original em si vem diretamente do mito de Adão e Eva, do Antigo Testamento. O pecado deles — comer do fruto da árvore proibida — parece merecedor de não mais que uma simples bronca. Mas a natureza simbólica do fruto (o conhecimento do bem e do mal, que na prática se revelou o conhecimento de que eles estavam nus) foi o suficiente para transformar a travessura na mãe e no pai de todos os pecados.
 
Eles e todos os seus descendentes foram expulsos para sempre do Jardim do Éden, privados do dom da vida eterna e condenados a gerações de trabalhos dolorosos, no campo e no parto, respectivamente. Tão distante, tão vingativo: bem adequado ao tom do Antigo Testamento.
 
A teologia do Novo Testamento acrescenta mais uma injustiça, completada por um novo sadomasoquismo que nem o Antigo Testamento quase consegue superar. Pensando bem, é incrível que uma religião adote um instrumento de tortura e execução como seu símbolo sagrado, freqüentemente usado em torno do pescoço. Lenny Bruce observou bem que, "se Jesus tivesse sido morto há vinte anos, as crianças católicas estariam usando cadeirinhas elétricas no pescoço, em vez de cruzes".
 
Mas a teologia e a teoria da punição por trás disso são ainda mais graves. Acredita-se que o pecado de Adão e Eva tenha sido transmitido ao longo da linhagem masculina — transmitido pelo sêmen, de acordo com santo Agostinho. Que tipo de filosofia ética é essa que condena todas as crianças, mesmo antes de nascer, a herdar o pecado de um ancestral remoto? Agostinho, por sinal, que com razão se considerava uma espécie de autoridade pessoal em matéria de pecado, foi o responsável por cunhar o termo "pecado original". Antes dele isso era conhecido como "pecado ancestral". Os pronunciamentos e debates de Agostinho exemplificam, para mim, a preocupação pouco saudável dos primeiros teólogos cristãos com o pecadoEles podiam ter dedicado suas páginas e seus sermões a exaltar o céu estrelado, ou as montanhas e florestas, os mares e as cores do amanhecer. Essas coisas são mencionadas às vezes, mas o foco cristão está sempre no pecado pecado pecado pecado pecado pecado pecadoQue preocupaçãozinha chata para dominar sua vida.
 
Sam Harris é de uma virulência magnífica em seu livrinho Carta a uma nação cristã: "Sua principal preocupação [a de muitos religiosos] parece ser a de que o Criador do universo ficará ofendido com o que as pessoas fizerem peladas. Essa sua pudicícia contribui diariamente para o superavit da miséria humana".
 
Agora o sadomasoquismo. Deus encarnou-se como homem, Jesus, para que pudesse ser torturado e executado em expiação do pecado hereditário de Adão. Desde que Paulo expôs essa doutrina repugnante, Jesus vem sendo adorado como o redentor de todos os nossos pecados. Não apenas o pecado passado de Adão: pecados futuros também, decidam ou não as pessoas futuras cometê-los! Em outro adendo, já ocorreu a muita gente, incluindo Robert Graves, em seu romance épico King Jesus, que o pobre Judas Iscariotes ficou com um mau negócio, já que sua "traição" era uma parte necessária do plano cósmico. O mesmo poderia ser dito dos supostos assassinos de Jesus. Se Jesus queria ser traído e depois assassinado, para que pudesse nos redimir, não é injusto por parte daqueles que se consideram redimidos descontar em Judas e nos judeus por toda a eternidade?
 
Já mencionei a longa lista de evangelhos não canónicos. Um manuscrito que supostamente seria o Evangelho de Judas foi traduzido recentemente e recebeu grande publicidade em conseqüência. As circunstâncias de sua descoberta são controversas, mas aparentemente ele apareceu no Egito nos anos 1970 ou 1960. Está em copta, em 62 páginas de papiros, e remonta a por volta de 300 d. C., pela datação por carbono, tendo sido provavelmente baseado em um manuscrito grego mais antigo. Seja quem for o autor, o evangelho é visto da perspectiva de Judas Iscariotes e sustenta que Judas só traiu Jesus porque Jesus pediu que ele fizesse esse papel. Tudo fazia parte do plano para que Jesus fosse crucificado e assim redimisse a humanidade [e depois seus seguidores pudessem fantasiar com "profecias" intencionalmente cumpridas em um messias que, esperto e fanático, decidiu se adequar a elas para ficar famoso ou por algum outro motivo].
 
Descrevi a expiação dos pecados, a doutrina central do cristianismo, como cruel, sadomasoquista e repugnante. Também deveríamos qualificá-la como loucura de pedra, se não fosse pela enorme familiaridade com ela, que anestesia nossa objetividade. Se Deus quisesse perdoar nossos pecados, por que não perdoá-los, simplesmente, sem ter de ser torturado e executado em pagamento — condenando, dessa forma, as gerações futuras e remotas de judeus a pogroms e perseguições por serem os "assassinos de Cristo": e será que esse outro pecado hereditário também foi transmitido pelo sêmen?
 
Paulo, como deixa claro o intelectual judeu Geza Vermes, estava impregnado do velho princípio teológico judaico de que sem sangue não há expiação. Em sua Epístola aos Hebreus (9, 22), aliás, ele diz exatamente isso. Os estudiosos progressistas da ética hoje em dia já acham difícil defender qualquer tipo de teoria retributiva da punição, imagine então a teoria do bode expiatório — executar um inocente para pagar pelos pecados dos culpados. De qualquer maneira (não dá para não questionar), quem é que esse Deus estava tentando impressionar? Presumivelmente ele mesmo — juiz e júri, além de vítima de execução.
 
E, para completar, Adão, o suposto executor do pecado original, nem existiu: um fato estranho — tudo bem que Paulo não soubesse, mas um Deus onisciente supostamente saberia (e Jesus também, se se acreditar que ele era Deus) — o que mina fundamentalmente a premissa de toda essa teoria tortuosa e nojenta.
 
Ah, mas é claro, a história de Adão e Eva era apenas simbólica, não era? Simbólica? Então, para impressionar a si mesmo, Jesus fez-se ser torturado e executado, numa punição indireta por um pecado simbólico cometido por um indivíduo inexistente? Como eu disse, loucura de pedra, além de cruelmente desagradável.
 
Antes de deixar a Bíblia para trás, preciso chamar a atenção para um aspecto especialmente difícil de engolir de seus ensinamentos éticos. Os cristãos raramente percebem que boa parte das considerações morais pelos outros, que parecem ser promovidas tanto pelo Antigo quanto pelo Novo Testamento, tinha a intenção original de se aplicar apenas a um pequeno grupo interno e específico. "Amai o próximo" não significa o que achamos hoje que significa. Significava apenas "Amai outro judeu". Essa tese é defendida de forma arrasadora pelo físico americano e antropólogo evolucionista John Hartung. Ele escreveu um trabalho extraordinário sobre a evolução e a história bíblica da moralidade entre membros de um grupo, ressaltando, também, o outro lado — a hostilidade com os forasteiros...
 
AMA O PRÓXIMO
 
O humor negro de John Hartung fica evidente logo de cara," quando ele conta sobre uma iniciativa batista para contabilizar o número de cidadãos do Alabama no inferno. Como afirmaram o The New York Times e o Newsday, o total final, 1,86 milhão, foi estimado usando uma fórmula secreta segundo a qual os metodistas tinham uma chance maior de ser salvos que os católicos, e "virtualmente todo mundo que não pertencesse a uma congregação foi contabilizado entre os perdidos".
 
A presunção sobrenatural dessa gente reflete-se hoje nos vários sites de "arrebatamento", em que o autor sempre tem certeza absoluta de que estará entre os que "desaparecerão" nos céus quando o "fim dos tempos" chegar. Veja um exemplo típico, do autor de "Rapture Ready", um dos exemplares mais odiosamente santimoniais do género: "Se o arrebatamento ocorrer, resultando na minha ausência, tornar-se-á necessário que santos da tribulação reproduzam ou sustentem financeiramente este site".
 
A interpretação que Hartung faz da Bíblia sugere que ela não fornece base para uma complacência tão convicta como a dos cristãos. Jesus limitou seu grupo de salvos estritamente aos judeus, no que respeitava a tradição do Antigo Testamento, que era tudo que conhecia. Hartung mostra claramente que "Não matarás" jamais quis significar o que achamos hoje que significa. Significava, de uma maneira bem específica, que não matarás judeus. E todos os mandamentos que fazem referência ao "próximo" são igualmente excludentes. "Próximo" significa camarada judeu.
 
Maimônides, rabino e médico altamente respeitado do século XII, descreve o significado pleno de "Não matarás" da seguinte maneira: "Se alguém mata um único israelita, transgride um mandamento negativo, pois a Escritura diz: Não matarás. Se alguém matar propositadamente na presença de testemunhas, ele é morto pela espada. É óbvio que ele não é morto se matar um pagão".
 
É óbvio! Hartung cita o Sinédrio (a Suprema Corte Judaica, presidida pelo sumo sacerdote) no mesmo tom, absolvendo um homem que hipoteticamente matou um israelita por engano, quando pretendia matar um animal ou um pagão.
 
Esse instigante enigma moral suscita uma questão interessante. E se jogarmos uma pedra sobre um grupo de nove pagãos e um israelita, e tivermos a infelicidade de matar o israelita? Hum, difícil! Mas a resposta já está pronta. "Então sua não- responsabilidade pode ser inferida do fato de que a maioria era de pagãos."
 
Hartung usa muitas citações bíblicas do tipo das que usei neste capítulo, sobre a conquista da Terra Prometida por Moisés, Josué e os Juizes. Tive o cuidado de admitir que as pessoas religiosas não pensam mais de modo bíblico. Para mim, isso comprovou que nossos princípios morais, sejamos nós religiosos ou não, vêm de outra fonte; e que essa outra fonte, seja ela qual for, está disponível para todos nós, independentemente da religião ou da ausência dela.
 
Mas Hartung conta um estudo apavorante feito pelo psicólogo israelense George Tamarin. Tamarin apresentou para mais de mil crianças israelenses, entre oito e catorze anos de idade, o relato da batalha de Jericó, do livro de Josué:
 
"Disse Josué ao povo: 'Gritai, porque o SENHOR vos tem dado a cidade. Porém a cidade será anátema ao SENHOR, ela e tudo quanto houver nela [...] Toda a prata, e o ouro, e os vasos de metal, e de ferro são consagrados ao SENHOR; irão ao tesouro do SENHOR' [...] E tudo quanto havia na cidade destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento [...] Tão- somente a prata, e o ouro, e os vasos de metal e de ferro deram para o tesouro da casa do SENHOR." (Josué, cap. VI)
 
Tamarin fez às crianças uma simples pergunta moral: "Vocês acham que Josué e os israelitas agiram bem ou não?". Elas tinham de escolher entre A (aprovação total), B (aprovação parcial) e C (reprovação total). Os resultados foram polarizados: 66% deram aprovação total e 26% reprovação total, com uma proporção bem menor (8%) no meio, com aprovação parcial.
 
Aqui estão as três respostas típicas do grupo da aprovação total (A):
- Na minha opinião, Josué e os Filhos de Israel agiram bem, e aqui estão as razões: Deus prometera esta terra a eles, e deu-lhes permissão para conquistá-la. Se eles não tivessem agido dessa maneira ou não tivessem matado ninguém, haveria o perigo de que os Filhos de Israel fossem assimilados pelos góis.
- Na minha opinião Josué estava certo ao fazer aquilo, sendo que um dos motivos é que Deus mandou que ele exterminasse o povo para que as tribos de Israel não fossem assimiladas entre eles e aprendessem seus maus hábitos.
- Josué agiu bem porque o povo que morava na terra era de uma religião diferente, e quando Josué os matou ele varreu a religião deles da. face da Terra.
 
A justificativa para o massacre genocida de Josué é sempre religiosa. Até os da categoria C, que deram sua total reprovação, fizeram isso, em alguns casos, por motivos religiosos duvidosos. Uma menina, por exemplo, reprovou a conquista de Jericó por Josué porque, para fazê-lo, ele teve de entrar nela:
- Acho que foi ruim, já que os árabes são impuros e se alguém entra numa terra impura também fica impuro e amaldiçoado como eles.
Dois outros estudantes que reprovaram totalmente a atitude de Josué o fizeram porque Josué destruiu tudo, incluindo animais e bens, em vez de manter alguma coisa como prémio para os israelitas:
- Acho que Josué não agiu bem, porque eles podiam ter poupado os animais para eles mesmos.
- Acho que Josué não agiu bem, porque ele podia ter deixado os bens de Jericó; se ele não tivesse destruído os bens, eles teriam ficado com os israelitas.
 
Mais uma vez o sábio Maimônides, freqüentemente citado por seu conhecimento acadêmico, não tem dúvidas de sua posição a respeito da questão: "É um mandamento positivo destruir as sete nações, já que está dito: Totalmente as destruirás. Se não se mata quem cai em seu poder, transgride-se um mandamento negativo, já que está dito: Nenhuma coisa que tem fôlego deixarás com vida".
 
Diferentemente de Maimônides, as crianças do experimento de Tamarin eram jovens o suficiente para ser inocentes. Presume-se que as opiniões selvagens que elas manifestaram sejam as de seus pais, ou do grupo em que foram criadas. Não é improvável, acredito, que crianças palestinas, criadas no mesmo país dilacerado pela guerra, dessem opiniões equivalentes, na direção contrária.
 
Essas considerações enchem-me de desespero. Elas parecem mostrar o imenso poder da religião, e especialmente da educação religiosa das crianças, para dividir as pessoas e alimentar inimizades históricas e vendetas hereditárias. Não me contenho em ressaltar que duas das três citações representativas do grupo A do experimento de Tamarin mencionavam os perigos da assimilação, enquanto a terceira reforçava a importância de matar as pessoas para eliminar sua religião.
 
Tamarin fez um grupo de controle fascinante em sua experiência. Um grupo diferente de 168 crianças israelenses recebeu o mesmo texto do livro de Josué, mas com o nome de Josué trocado por "general Lin" e "Israel" trocado por "um reino chinês há 3 mil anos". Dessa vez o experimento teve resultados opostos. Apenas 7% aprovaram o comportamento do general Lin, e 75% o reprovaram. Em outras palavras, quando sua lealdade ao judaísmo foi removida da equação, a maioria das crianças concordou com os juízos morais que a maioria dos seres humanos modernos teria.
 
A atitude de Josué foi um feito de genocídio selvagem. Mas tudo fica diferente do ponto de vista religioso. E a diferença começa muito cedo na vida. Foi a religião que fez a diferença entre as crianças condenarem ou endossarem o genocídio.
 
Na segunda metade de seu trabalho, Hartung passa para o Novo Testamento. Para dar um breve resumo da tese dele, Jesus foi um devoto da mesma moralidade entre membros do mesmo grupo — associada à hostilidade a forasteiros — que era tida como certa no Antigo TestamentoJesus era um judeu leal. Foi Paulo quem inventou a idéia de levar o Deus judeu aos gentios. Hartung usa um tom mais duro do que eu me atreveria: "Jesus teria se revirado no túmulo se soubesse que Paulo estava levando seu plano para os porcos".
 
Hartung divertiu-se bastante com o livro do Apocalipse, que certamente é um dos livros mais estranhos da Bíblia. Foi supostamente escrito por são João, e, como disse bem o Ken’s guide to the Biblese as epístolas podem ser vistas como João maconhado, o Apocalipse é João sob LSD.100
 
Hartung chama a atenção para os dois versos do Apocalipse em que o número dos "selados" (que algumas seitas, como as Testemunhas de Jeová, interpretam como "salvos") limita-se a 144 mil. A tese de Hartung é que todos teriam de ser judeus: 12 mil de cada uma das doze tribos. Ken Smith vai além, destacando que os 144 mil eleitos "não estão contaminados com mulheres", o que presumivelmente significa que nenhum deles podia ser mulher. Bem, esse é o tipo de coisa que já era de esperar. Há muito mais no agradável trabalho de Hartung. Simplesmente o recomendarei mais uma vez, e o resumirei numa citação:
 
"A Bíblia é um guia da moralidade entre membros do mesmo grupo, contendo instruções para o genocídio, para a escravização de forasteiros e para a dominação do mundo. Mas a Bíblia não é malévola devido a seus objetivos ou à glorificação do assassinato, da crueldade e do estupro. Muitas obras antigas fazem a mesma coisa — a Ilíada, as sagas islandesas, as lendas dos sírios da Antiguidade ou as inscrições dos maias, por exemplo. Mas ninguém sai por aí vendendo a Ilíada como base da moralidade. Aí é que está o problema. A Bíblia é vendida, e comprada, como um guia para orientar a vida das pessoas. E é, de longe, o maior best-seller de todos os tempos [infelizmente]."
 
Antes que se pense que o exclusivismo do judaísmo tradicional seja singular entre as religiões, veja o seguinte verso confiante de um hino de Isaac Watts (1674- 1748):
Senhor, atribuo à Tua Graça,
E não ao acaso, como outros,
Que eu tenha nascido de Raça Cristã
E não Pagão ou Judeu.
 
O que me intriga nesses versos não é o exclusivismo per se, mas a lógica. Como muitos outros nasceram em religiões que não o cristianismo, como Deus decidiu que pessoas futuras deveriam receber um nascimento tão favorecido? Por que beneficiar Isaac Watts e as pessoas que ele visualizou que cantariam seu hino? E, além disso, antes de Watts ter sido concebido, qual era a natureza da entidade que estava sendo favorecida? São águas profundas, mas talvez não profundas demais para uma mente afinada com a teologia.
 
O hino de Isaac Watts remete a três orações diárias que são ensinadas aos homens judeus ortodoxos e conservadores (mas não os reformados): "Abençoado sejas por não ter feito de mim um gentio. Abençoado sejas por não ter feito de mim uma mulher. Abençoado sejas por não ter feito de mim um escravo".
 
A religião é sem dúvida uma força que provoca divisões, e essa é uma das principais acusações levantadas contra ela. Mas diz-se com frequência e com razão que as guerras, e as brigas entre grupos ou seitas religiosas, raramente dizem respeito a discordâncias teológicas. Quando um paramilitar protestante do Ulster mata um católico, ele não está pensando: "Tome isto, seu idiota transubstancionistamariólatraincensado!". É muito mais provável que ele esteja vingando a morte de outro protestante morto por outro católico, talvez dentro de uma vendeta transgeracional. A religião é um rótulo para a inimizade entre integrantes do grupo/forasteiros e para a vendeta, não necessariamente pior que outros rótulos como a cor da pele, a língua ou o time de futebol preferido, mas freqüentemente disponível quando outros rótulos não estão disponíveis.
 
Sim, sim, é claro que os problemas da Irlanda do Norte são políticos. Realmente houve opressão económica e política de um grupo sobre o outro, e isso remonta a séculos atrás. Realmente existem ressentimentos e injustiças genuínos, e eles parecem ter pouco a ver com religião; tirando o fato de que — e isso é importante e muitas vezes deixado de lado — sem a religião não haveria alguns rótulos herdados ao longo de muitas gerações.
 
Católicos cujos pais, avós e bisavós estudaram em escolas católicas mandam os filhos para escolas católicas. Protestantes cujos pais, avós e bisavós estudaram em escolas protestantes mandam os filhos para escolas protestantes. Os dois grupos têm a mesma cor de pele, falam a mesma língua, gostam das mesmas coisas, mas é como se pertencessem a espécies diferentes, de tão profunda que é a divisão histórica. E, sem a religião, e a educação de segregação religiosa, a divisão simplesmente não existiria. Os dois teriam se unido por meio de casamentos e há muito tempo se dissolvido um no outro.
 
Do Kosovo à Palestina, do Iraque ao Sudão, do Ulster ao subcontinente indiano, observe meticulosamente qualquer região do mundo onde encontrar inimizade e violência intratáveis entre grupos rivais. Não posso garantir que você encontrará religiões como rótulos dominantes para os membros dos grupos e para os forasteiros. Mas é uma boa aposta.
 
Na Índia, na época da partição, mais de 1 milhão de pessoas foram vítimas de massacre nos confrontos religiosos entre hindus e muçulmanos (e 15 milhões foram desalojados de suas casas)Não havia outros rótulos que não os religiosos para definir quem deveria ser morto. No final, não havia nada que os dividisse, com exceção da religião.
 
Salman Rushdie, por causa de uma onda mais recente de massacres religiosos na índia, escreveu um artigo chamado "A religião, como sempre, é o veneno no sangue da índia". Esses são os parágrafos que concluem o texto:
 
"O que há para ser respeitado em tudo isso, ou nos crimes que estão sendo cometidos quase diariamente em nome da malfadada religião? Como a religião ergue bem seus totens, com resultados tão fatais, e como estamos dispostos a matar por eles! E, quando já fizemos isso várias vezes, o amortecimento de seu efeito torna mais fácil fazê-lo de novo. Assim, o problema da Índia revela-se o problema do mundo. O que aconteceu na Índia aconteceu em nome de Deus."
 
Não nego que as poderosas tendências da humanidade para a lealdade dentro do grupo e a hostilidade a forasteiros existiriam mesmo na ausência da religião. Torcedores de times de futebol rivais são um exemplo do fenômeno em menor escala. Até mesmo os torcedores às vezes se dividem pela religião, como é o caso do Glasgow Rangers e do Glasgow Celtic. Línguas (como na Bélgica), raças e tribos (especialmente na África) podem ser símbolos importantes de divisão. Mas a religião amplifica e exacerba os danos, no mínimo de três maneiras:
 
• Rotulação das crianças. As crianças são descritas como "crianças católicas" ou "crianças protestantes" etc., desde que são bem pequenas, e certamente muito antes de ter chegado a suas próprias conclusões sobre o que acham da religião (retomo esse abuso contra a infância no capítulo 9).
 
• Escolas segregadas. As crianças são educadas, novamente desde bem cedo, junto com membros de um grupo religioso e distantes de crianças cujas famílias adotam outras religiões. Não é exagero dizer que os problemas da Irlanda do Norte desapareceriam no período de uma geração se a educação segregadora fosse abolida.
 
• Tabus contra "casamentos externos". Isso perpetua brigas e vendetas hereditárias, evitando a mistura de grupos adversários. O casamento misto, se permitido, tenderia naturalmente a amenizar as inimizades.
 
O vilarejo de Glenarm, na Irlanda do Norte, é o berço dos condes de Antrim. Uma vez, há não muito tempo, o então conde fez o inimaginável: casou-se com uma católica. Imediatamente, nas casas em toda a Glenarm, as janelas fecharam-se em sinal de luto.
 
O horror aos casamentos externos também é disseminado entre os judeus religiosos. Várias das crianças israelenses citadas anteriormente mencionaram o perigo da "assimilação" como base de sua defesa da ação de Josué na batalha de Jericó. Quando pessoas de religiões diferentes se casam entre si, o fato é descrito com tristeza pelos dois lados como um "casamento misto" e com freqüência há longas batalhas para decidir como as crianças serão educadas.
 
Quando eu era criança e ainda tinha lá minha afeição pela Igreja Anglicana, lembro-me de ter ficado confuso ao ouvir falar de uma regra segundo a qual, quando um católico se casava com uma anglicana, os filhos eram sempre criados como católicos. Eu entendia por que um padre de cada denominação tentaria insistir nessa condição. O que eu não conseguia entender (e ainda não consigo) era a assimetria. Por que os padres anglicanos não retaliavam com a regra equivalente, invertida? Talvez fossem menos brutais. Meu velho capelão e o "Nosso Padre" de Betjeman eram bonzinhos demais.
 
Os sociólogos já fizeram pesquisas estatísticas sobre a homogamia religiosa (casar-se com alguém da mesma religião) e a heterogamia (casar-se com alguém de outra religião). Norval D. Glenn, da Universidade do Texas em Austin, reuniu vários estudos desse tipo feitos até 1978 e os analisou em conjunto. Ele concluiu que existe uma tendência significativa para a homogamia religiosa nos cristãos (protestantes se casam com protestantes, católicos se casam com católicos, e isso supera o "efeito do vizinho"), mas que ela é especialmente marcante entre os judeus. De uma amostra total de 6021 pessoas casadas que responderam ao questionário, 140 autodenominaram-se judias, e, destas, 85,7% haviam se casado com judeus. Essa proporção é imensamente maior que a porcentagem que seria aleatoriamente de esperar de casamentos homógamos. E é claro que não se trata de uma novidade para ninguém. Judeus devotos são fortemente desencorajados a se casar com alguém de fora do grupo, e o tabu mostra-se nas piadas sobre mães judias alertando seus meninos para ter cuidado com shiksas loiras de butuca para agarrá-los.
 
Veja declarações típicas de três rabinos americanos:
• "Recuso-me a celebrar casamentos inter-religiosos."
• "Celebro-os se os casais declaram sua intenção de criar os filhos como judeus."
• "Celebro-os se os casais concordarem em participar de um aconselhamento pré-nupcial."
 
São raros os rabinos que concordam em celebrar o casamento junto com um sacerdote cristão, embora haja grande procura.
 
Mesmo que a religião em si não fizesse nenhum outro mal, sua característica divisora, perversa e cuidadosamente cultivada — sua apropriação deliberada da tendência natural da humanidade de favorecer os integrantes de seu próprio grupo e rejeitar os forasteiros — já seria suficiente para fazer dela uma força maligna significativa para o mundo.
 
 
O ZEITGEIST MORAL
 
 
Este capítulo começou mostrando que nós — mesmo os religiosos — não baseamos nossa moralidade em livros sagrados, não importa no que acreditemos. Como, então, decidimos o que é certo e o que é errado? Independentemente de como respondamos a essa pergunta, existe um consenso sobre o que consideramos ser certo e errado: um consenso que prevalece de uma forma surpreendentemente disseminada. O consenso não tem nenhuma conexão evidente com a religião. Ele se estende, no entanto, a pessoas religiosas, pensem elas ou não que seus princípios morais vêm das Escrituras.
 
Com as notáveis exceções do Talibã afegão e do cristianismo americano equivalente, a maioria das pessoas repete o mesmo consenso liberal e amplo de princípios éticos. A maioria de nós não provoca sofrimento desnecessário; acreditamos na liberdade de expressão e a protegemos mesmo quando discordamos do que está sendo dito; pagamos nossos impostos; não traímos, não matamos, não cometemos incesto, não fazemos aos outros o que não queremos que façam conosco. Alguns desses bons princípios podem ser encontrados em livros sagrados, mas enterrados junto com um monte de coisa que nenhuma pessoa decente gostaria de seguir: e os livros sagrados não fornecem regras para distinguir os bons princípios dos ruins.
 
Uma forma de expressar nossa ética consensual é na forma de "Novos Dez Mandamentos". Várias pessoas e instituições já tentaram fazer isso. O significativo é que eles tendem a produzir resultados bastante semelhantes entre si, e o que eles produzem é típico dos tempos em que vivem. Veja um conjunto de "Novos Dez Mandamentos" de hoje em dia, que encontrei por acaso numa página pró-ateísmo na internet:
 
• Não faça aos outros o que não quer que façam com você.
• Em todas as coisas, faça de tudo para não provocar o mal.
• Trate os outros seres humanos, as outras criaturas e o mundo em geral com amor, honestidade, fidelidade e respeito.
• Não ignore o mal nem evite administrar a justiça, mas sempre esteja disposto a perdoar erros que tenham sido reconhecidos por livre e espontânea vontade e lamentados com honestidade.
• Viva a vida com um sentimento de alegria e deslumbramento.
• Sempre tente aprender algo de novo.
• Ponha todas as coisas à prova; sempre compare suas idéias com os fatos, e esteja disposto a descartar mesmo a crença mais cara se ela não se adequar a eles.
• Jamais se autocensure ou fuja da dissidência; sempre respeite o direito dos outros de discordar de você.
• Crie opiniões independentes com base em seu próprio raciocínio e em sua experiência; não se permita ser dirigido pelos outros.
• Questione tudo.
 
Essa pequena coleção não é obra de um grande sábio, ou profeta, ou de um profissional da ética. É só a tentativa simpática de um blogger de resumir os princípios de uma vida de bem hoje em dia, em comparação com os Dez Mandamentos bíblicos [e com um resultado bem melhor que o destes]. Foi a primeira lista que encontrei quando escrevi "Novos Dez Mandamentos" num programa de busca, e deliberadamente não procurei mais que isso. O que interessa é que esse é o tipo de lista que qualquer pessoa decente comum elaboraria.
 
Nem todo mundo faria exatamente a mesma lista. O filósofo John Rawls pode incluir alguma coisa do tipo: "Sempre crie suas normas como se não soubesse se está no topo ou no ponto mais baixo da hierarquia". Um suposto sistema inuíte para dividir a comida é um exemplo prático do princípio de Rawls: quem corta a comida é o último a escolher o pedaço. Nos meus Dez Mandamentos emendados, escolheria alguns dos listados acima, mas também tentaria achar espaço para, entre outros:
 
• Aproveite sua própria vida sexual (desde que ela não prejudique outras pessoas) e deixe que os outros aproveitem a deles em particular, sejam quais forem as inclinações deles, que não lhe interessam.
• Não discrimine nem oprima com base no sexo, na raça ou (sempre que possível) na espécie.
• Não doutrine seus filhos. Ensine-os a pensar por si mesmos, a avaliar as provas e a discordar de você.
• Leve em consideração um futuro numa escala de tempo maior que a sua.
 
Mas deixemos para lá essas pequenas divergências de prioridade. O importante é que todos nós evoluímos, e bastante, desde os tempos bíblicos. A escravidão, que era aceita como uma coisa natural na Bíblia e ao longo da maior parte de nossa história, foi abolida nos países civilizados no século XIX. Todas as nações civilizadas hoje aceitam o que até os anos 1920 era amplamente negado, o fato de que o voto da mulher, numa eleição ou num júri, é igual ao do homem. Nas sociedades esclarecidas de hoje (uma categoria que claramente não inclui, por exemplo, a Arábia Saudita), as mulheres já não são consideradas uma propriedade, como sem dúvida eram nos tempos bíblicosQualquer sistema legal moderno teria processado Abraão por maus-tratos contra criançaE, se ele realmente tivesse executado seu plano de sacrificar Isaac, nós o teríamos condenado por homicídio qualificado.
 
Religiosos ou não, todos nós mudamos de forma maciça em nossa atitude quanto ao que é certo e ao que é errado. (...) A emancipação dos escravos e das mulheres deve muito a líderes carismáticos. Alguns desses líderes eram religiosos; outros não. Alguns dos que eram religiosos fizeram suas boas ações porque eram religiosos. Em outros casos, sua religião foi um acaso. Embora Martin Luther King fosse cristão, ele tirou sua filosofia da desobediência civil pacífica de Gandhi, que não era. E há, também, os avanços na educação e, em particular, a compreensão cada vez maior de que todos nós possuímos a humanidade em comum com membros de outras raças e do sexo oposto — ambas as idéias profundamente não bíblicas e que vêm da ciência da biologia, especialmente da evolução... 

 

Bônus:

 

 

"A mensagem do livro de Hauser, para antecipá-la nas próprias palavras dele, é essa: "Orientando nossos juízos morais há uma gramática moral universal, uma faculdade da mente que evoluiu ao longo de milhões de anos, até incluir um conjunto de princípios para formar uma série de sistemas morais possíveis. Assim como com a linguagem, os princípios que compõem nossa gramática moral voam abaixo do radar de nossa consciência"."

 

  O que eu disse? Moral relativa.

 

  Você lê o que posta? 

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48 minutos atrás, Kaio_Amaral disse:

  Você generaliza o problema para procurar erros, perdão, mas acho isso muita desonestidade intelectual. 

  Com análises simplistas eu acho erro em qualquer coisa, ora bolas! Parece que vocês acham que se instituírem lei de pena de morte vai ser assim "Foi contra a lei, morreu!". Não é tudo tão simples! Para ir para cadeira elétrica creio que teria que se ter muita evidência, não se manda suspeito para o corredor da morte.

  Enfim, que eu saiba, o Bolsonaro nunca se pronunciou sobre como seria a legislação acerca da pena de morte, se ele procurasse instituí-la, fora que não depende só dele. Vocês estão querendo julgar os erros dos meios sem saber quais meios serão tomados.

  A questão que deve-se colocar é se a pena de morte pode ser legítima, os meios tem que ser decididos posteriormente a isso.

 

 EDIT: Os meios têm que ser discutidos depois disso.

Eu sou a favor do estatuto da legítima defesa, mas tenho um receio, pelo seguinte. O bem júridico protegido, por ex, um celular, valeria mais que a vida do infrator(assaltante)? 

É por esse questionamento que não vejo como o estatuto ir pra frente... Na dada situação, eu sacaria minha arma, ao ver que o bandido roubou meu celular, e após este encontrar se em fuga, eu dispararia, podendo matá-lo.  

Acredito que o ordenamento colocaria numa balança, o que valeria mais: o meu patrimônio, de preço calculável, ou a vida do infrator, infinitamente de maior valor, incalculável. 

Editado por heitor5452
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5 minutos atrás, Kaio_Amaral disse:

"A mensagem do livro de Hauser, para antecipá-la nas próprias palavras dele, é essa: "Orientando nossos juízos morais há uma gramática moral universal, uma faculdade da mente que evoluiu ao longo de milhões de anos, até incluir um conjunto de princípios para formar uma série de sistemas morais possíveis. Assim como com a linguagem, os princípios que compõem nossa gramática moral voam abaixo do radar de nossa consciência"."

 

  O que eu disse? Moral relativa.

 

  Você lê o que posta? 

Vc percebeu que eu fiz esse post pra mostrar que a moral não vem da religião?

 

E outra,esses 2 capítulos não falam somente do livro de Hauser.

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3 minutos atrás, heitor5452 disse:

Eu sou a favor do estatuto da legítima defesa, mas tenho um receio, pelo seguinte. O bem júridico protegido, por ex, um celular, valeria mais que a vida do infrator(assaltante)? 

É por esse questionamento que não vejo como o estatuto ir pra frente... Na dada situação, eu sacaria minha arma, ao ver que o bandido roubou meu celular, e após este encontrar se em fuga, eu dispararia, podendo matá-lo.  

  Pode postar link desse estatuto? Desconheço as normas para ser considerado "legítima defesa" de acordo com esse estatuto.

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7 minutos atrás, Kaio_Amaral disse:

  Pode postar link desse estatuto? Desconheço as normas para ser considerado "legítima defesa" de acordo com esse estatuto.

É apenas uma nomenclatura informal, acredito. Acho que não foi levada à rigor do instituto da legítima defesa.

 

http://www.cbte.org.br/diverso/pl_3722_2012.pdf

Editado por heitor5452
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